Capítulo 2

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Cruzar a entrada se trata de uma tarefa costumeira para a maioria, até banal. Sua estatura na base de 3 metros não passa de concreto, seu elegante tapete de "Boas Vindas" tem nenhuma função além de arrastar os tênis em dias de chuva.

Para mim, Érika Santos, se trata da abertura da sua série favorita. A introdução deliciosa que você sabe de cor. Quando a ouve sente-se relaxada, seu cérebro sabe o que está por vir, e será muito bom.

Assim iniciam meus dias.

Mal atravesso a entrada e sinto os olhos curiosos de relance. Alguns não tentam esconder a admiração, já outros encobrem a inveja com falsas expressões de desdém. Mas não importa, minha imponência é um consenso.

— Bom dia, Erika! — Me saúda alguns — Como está se sentindo?

Eis a primeira regra para ser respeitada, isso não é uma troca.

Se lhe oferecerem um bolo, agradeça. Não falte com sorrisos. Mas não devolva mais do que algumas migalhas.

— Ótima — Respondo, abanando a cabeça em seguida num sinal de agradecimento.

A sensação que fica é a de ter recebido um grande privilégio. Eles vão dar risadas entre si, irão especular sobre a atenção que receberam, mas não sentirão que estão a altura de receber a pergunta de volta. Assim funciona a dignidade.

Depois de alguns passos estou no refeitório. Na mesa, meus amigos. Os únicos que merecem minha atenção, ou mesmo minhas perguntas.

Sabrina, cabelos curtos e negros, tem a postura desleixada. Há quem a chame de gótica, há quem a chame de rebelde sem causa. Para nós, uma amiga louca.

Sentada a sua esquerda, o completo oposto. Rita tem madeixas ruivas e compridas, os olhos arregalados de um rato e um intelecto assombroso. Entre num debate com ela e perca sua dignidade em dez segundos.

Tentando equilibrar sete copos plásticos sem derrubar, Scott. Distraído, jogador, e também o namorado de Sabrina. Bonitinho, mas não o galã.

Então você me pergunta, quem é o Galã?

Atrasado. Como sempre.

Mike tropeça nos próprios pés enquanto corre em direção da nossa mesa. Tem o cabelo molhado pingando na testa, os cardaços não passam de fios soltos, e a mochila então? Completamente aberta. Não é como se fechar um zíper fosse tão complicado.

E apesar de toda essa descrição, havia um brilho indescritível em seu olhar. Uma força quase física. Gostaria de dizer que me passa batido, mas me vejo completamente incapaz de suprimir o fascínio sempre que nossos olhares se cruzam.

— Bom dia, pessoal! — Ele exclama, a voz ofegante de quem correu uma maratona.

— Na próxima — Scott diz sem o dirigir um olhar direto — Vá de carro.

— Carro aonde? — Sabrina se embrenha sobre a mesa — Espera, você não veio da sua casa?

Não demora para o pensamento abater a todos na mesa. Sinto um pesar inexplicável.

— Então... — Scott termina de equilibrar o penúltimo copo — Qual o nome dela?

Mike fica em silêncio por alguns segundos, a expressão concentrada de quem tenta lembrar algo, o que leva Scott a gargalhar.

— Seu garanhão — Balança a cabeça em negativa, como que não conseguindo acreditar — Sabe de onde ela é, pelo menos?

— Não... Espera! — Esfrega a têmpora — Não, não foi. Foi mal, cara.

Eu, Rita e Sabrina trocamos um olhar cansado. "Garotos".

— Esqueçam isso, tenho uma novidade — Me aprumo, batendo com as mãos na mesa.

E para o infortúnio de Scott, a torre de copos se desfaz como num sopro. Ele esconde o rosto dentro das palmas, frustrado. Sabrina lhe dá uma batidinha no ombros.

— Você não iria conseguir mesmo — Diz entre uma mordida do sanduíche e outra.

— Você é a melhor namorada do mundo — Ele responde de volta, a voz regada a um sarcasmo divertido.

— Atenção aqui — Volto a falar — A formatura está chegando. Temos um mês e muitos planos!

Agora todos os olhares da mesa estão em mim.

— E recebi a carta da República da faculdade. Temos a resposta.

Ninguém consegue conter a empolgação. São suspiros e trocas de gritinhos em cada canto da mesa.

— E o que diz a carta?! — Rita de longe é a mais ansiosa — Keka, não faz isso com a gente, conta logo!

Rio da reação.

— Leiam vocês mesmos — Tiro a carta da bolsa, a jogando no centro da mesa.

Mike a toma antes de todos, se colocando a ler:

— "Caros formandos, o processo de admissão da instituição foi aprovado. A República Camargo terá o prazer de recebê-los, para mais informações consulte o nosso regulamento no site"

Rita não resiste a levantar e me agarrar para um abraço.

— Está acontecendo — Sua voz começa a embargar — Vamos continuar juntos na faculdade.

Rio entre lágrimas.

— E ainda teremos nossa própria casa! — Sabrina exclama — Isso tudo é... uau

Os garotos trocam batidas e comentários também, a emoção é coletiva. A vida nunca pareceu tão perfeita.

E é aí que nasce o tolo.

Ele confia na felicidade, como se ela não fosse inconstante.




Filho De Um DescuidoOnde histórias criam vida. Descubra agora