"Favoritos."

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A enfermeira chamou o médico, que prescreveu uma série de exames. Deu-me imensa pena ver o Ty perdido daquela maneira. Ele não sabia de nada. Não sabia quem eu sou, quem é a Kylie, ou até mesmo quem ele é. Lembra-se do seu próprio nome. Não se lembra de andar na universidade, nem do nome dos pais, no entanto, reconhece-os em fotografia. Insistia que continuava a morar em Nova Iorque, como quando tinha 17 anos. Perguntou o que fazia em Detroit. Eu expliquei-lhe tudo. 

Contei-lhe tudo o que sabia sobre ele... Ninguém é capaz de imagina o quão estranho é explicar a alguém quem ele próprio é. Há coisas que sabemos sobre nós próprios que mais ninguém sabe. Eu fiquei muito tempo a conversar com ele. O médico disse que era bom, podia ser que ele se começasse a lembrar de algumas coisas, no entanto ainda não sabemos o resultado dos exames, e a amnésia pode ser irreversível. 

"E qual é a minha cor favorita?" Perguntou a dada altura da conversa.

"Olha em volta, e diz-me qual a cor que mais te agrada..." Afinal a amnésia não altera os gostos... não é?

Ele olhou, e olhou.

"Azul... gosto do azul." Um sorriso desenhou-se no meu rosto.

"Exato... azul é a tua cor favorita." Ele também ficou feliz com essa pequena conquista. 

De seguida tentei pregar-lhe uma partida. Ele nunca, mas nunca bebe leite sem nada. Só bebe com chocolate, ou com café, baunilha... qualquer coisa, menos leite simples. Então peguei no pacote de leite simples que a enfermeira me tinha levado e que eu não tinha bebido e dei-lho.

"Deves estar com fome... bebe." 

Ele pegou no pacote, olhou, colocou a palhinha e ia começar a beber.

"Não... eu não gosto de leite simples..." Disse à última da hora, antes de começar a beber.

Eu deixei escapar mais um sorriso, peguei no pacote, e já que estava aberto eu bebi-o. A enfermeira chamou-me lá fora.

"Então? Como está a sair-se?" Perguntou.

"Bem... acho eu. Já se lembra de coisas que gosta e não gosta... devo continuar com os estímulos ou é melhor não o cansar?"

"Não... podes continuar. Mas quando ele não se lembrar de alguma coisa, não insistas." Eu assenti com a cabeça e voltei para dentro.

Comecei a falar de assuntos que estou a aprender nas aulas de relações internacionais, se ele soubesse comentar o assunto, e comentasse corretamente, talvez os seus conhecimentos não tenham sido afetados. Ele falou naturalmente do assunto. Até deu a sua própria opinião. Eu disse uma coisa errada de propósito e ele corrigiu-me. Comecei a sorrir.

"Do que é que te estás a rir?" Perguntou também com um sorriso.

"Acho que continuas inteligente..." Respondi.

"Eu sou inteligente?" Perguntou meio admirado.

"Muito."

"Ainda bem... porque agora sinto-me mesmo muito burro... sinto que não sei de nada..."

"Aquilo que estivemos a conversar é o tema mais complexo da disciplina de relações internacionais do primeiro ano do teu curso, sabias?"

"Disse muitos disparates?" Riu-se.

"Não... nenhum." 

Fiquei calada a pensar no que mais poderia conversar com ele, para estimular a memória. Peguei no telemóvel, pus a sua música favorita a passar - Smells Like Teen Spirit, dos Nirvana. 

Ele acompanhou a música inteira com os lábios, sabia a letra de uma ponta à outra, sem falhar uma vírgula. A música acabou e eu voltei a guardar o telemóvel.

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