capítulo 20

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Com os cabelos ainda molhados do ba­nho da manhã, Christopher entrou na cozinha e sentou-se no banquinho que Dulce havia feito questão de lhe emprestar. Enquanto comia cereais com banana, também mandados por Dulce, depois que ela vira que seus armários se encon­travam vazios, começou a ler distraidamente o que estava escrito na caixa de cereais.

Segundo ela, até mesmo um ignorante em ques­tões de cozinha, aparentemente ele próprio, seria capaz de preparar uma tigela de cereais com banana.

Christopher havia decidido não tomar aquilo como ofensa, mesmo não se considerando tão ignorante assim em matéria de cozinha. Afinal, havia con­seguido preparar uma salada na noite anterior, não havia? Tudo bem que Dulce fizera maravilhas com aqueles legumes e os pedaços de frango, mas isso era um mero detalhe.

De fato, ela cozinhava muito bem. Do jeito que as coisas estavam indo, ele acabaria deixando de lado os sanduíches rápidos que estava acostumado a preparar para si mesmo.

Pensativo, olhou na direção da sala e franziu o cenho ao avistar o esquisito sapo de bronze se­gurando uma lâmpada de néon de formato trian­gular. Ainda não estava muito certo que como Dulce o convencera a comprar aquilo, e nem de como ela o levara a pagar à sra. Wolinsky uma boa quantia por uma cadeira reclinável de segun­da mão, da qual a mulher estava querendo se livrar. E com razão. Afinal, quem diabos iria que­rer ter na sala de casa uma cadeira reclinável com detalhes em verde e roxo?

No entanto, lá estava a cadeira em sua sala. Felizmente, apesar da horrível aparência, ela era bastante confortável.

Mas quando se possuía uma cadeira e um aba­jur, claro que também precisava de uma mesa. A sua era um modelo Chippendale, e estava preci­sando desesperadamente de uma reforma. Mas, como Dulce salientara, por isso mesmo é que seu preço havia sido uma barganha. Por acaso, ela tinha um amigo que restaurava móveis por hobby, e que poderia resolver aquele problema.

Também por acaso, tinha uma amiga que era florista, o que explicava a presença daquele vaso com belas margaridas sobre o balcão da cozinha.

Um outro amigo, pelo visto ela tinha uma legião deles, pintava cenas das ruas de Nova York e as vendia em uma calçada. Não seria interessante colorir um pouco as paredes do apartamento com algo assim? Sugerira Dulce.

Ele respondera que não queria colorir nada, ,mas, mesmo assim, lá estavam três aquarelas ori­ginais "colorindo" sua sala. E Dulce já havia co­meçado a falar em tapetes.


Não entendia direito como ela conseguia aquilo, pensou, voltando a se concentrar no desjejum. Simplesmente, ficava falando sem parar, até con­vencê-lo a tirar a carteira do bolso e comprar al­guma quinquilharia.

Mas ambos estavam conseguindo se manter em seus próprios espaços. Se bem que no sábado ela havia "invadido" seu apartamento com baldes, es­fregões, vassouras e só Deus sabia mais o quê. Se ele ia mesmo morar ali, dissera ela, o lugar deveria ao menos ser limpo. Por isso, ele termi­nara passando três horas de uma tarde chuvosa limpando o chão e as janelas, quando deveria estar escrevendo.

Naquele dia, Dulce quase fora parar em sua cama. Por muito pouco, ele não a deitara na cama e a seduzira, quando ela ficara boquiaberta com o estado em que se encontrava o quarto. Dulce era desejável até mesmo quando ficava brava.

Ao ver toda aquela bagunça, ela começara a lhe dar um verdadeiro sermão a respeito de como ele deveria zelar mais por seu local de trabalho que, pelo visto, também era o lugar onde ele dormia.

Por que diabos mantinha as cortinas fechadas daquela maneira? Por acaso gostava de cavernas? Tinha alguma objeção religiosa quanto a ajeitar lençóis de cama?

Em meio ao discurso inflamado de Dulce, ele a abraçara de surpresa e a fizera se calar com o mais prazeroso dos métodos. E se, a caminho da cama, eles não houvessem tropeçado em uma verdadeira montanha de roupas usadas, duvi­dava que eles houvessem terminado a tarde indo à lavanderia.

Apesar das inconveniências, a atitude de Dulce tinha lá suas vantagens, admitiu ele. Gostava de se verem um lugar limpo e arejado, embora quase nunca notasse quando este se tornava bagunçado. Gostava de se deitar em uma cama forrada com lençóis limpos e perfumados, embora a idéia lhe parecesse ainda melhor diante da possibilidade de compartilhá-la com Dulce. Além disso, era real­mente difícil encontrar motivo para reclamar ao abrir os armários da cozinha e vê-los repletos de mantimentos.

Tomou um gole de café, lembrando-se de que deveria perguntar a Dulce por que o seu sempre ficava com aquele sabor esquisito, como se faltasse alguma coisa. Então pegou o jornal, e foi direto à seção de tiras cômicas, para ver o que ela havia feito dessa vez.

Leu por alto, franziu o cenho, então recomeçou a ler a tira com mais atenção.


Dulce já estava trabalhando. Deixara a janela do estúdio aberta, já que, aparentemente, a pri­mavera havia decidido deixar a cidade com uma temperatura mais amena. Uma brisa deliciosa es­tava entrando no ambiente, juntamente com o ine­vitável ruído vindo da rua.

Depois de desenhar as medidas dos quadrinhos no papel, deixou a régua de lado, passando a se concentrar no que iria desenhar no primeiro deles. Inclinando ligeiramente a cabeça, olhou para oquadrinho com ar pensativo. Ele tinha o dobro do tamanho daquele que iria aparecer no jornal, dali a alguns dias. Já tinha mais ou menos em mente o que iria desenhar. O cenário, a situação e o tema que iriam preencher aqueles cinco qua­drinhos e dar ao leitor do jornal a oportunidade de rir um pouco durante o desjejum.

Um Vizinho PerfeitoOnde histórias criam vida. Descubra agora