A vida foi acontecendo devagar para uns e mais depressa para outros. Os dias sucederam-se as noites as noites aos dias, num ciclo vicioso de onde ninguém foge. Não quero dizer que tenha passado muito tempo, não foi o caso, mas se foram duas semanas ou três, já não sei precisar.
Na manhã que se começava a desenhar por entre a bruma e nevoeiro, descobrindo e furando pouco a pouco fazendo romper a chegada de um novo dia, Elliot despertava de um sono meio tumultuoso. Não se podia dizer que havia passado boas noites de sono desde os últimos dias. Tinha sempre um espirito inquieto que não o deixava descansar, parecia que ás vezes o corpo lhe doía numa dor miudinha cansativa que nunca tirava folgas. Porém, já a sua mente matutava em tudo aquilo que tinha para fazer, os negócios que tinha que tratar, onde tinha de se deslocar, com quem teria de se encontrar e até o que ia vestir. Essa era uma das suas maiores qualidades, por muito cansado, exausto até que estivesse, e as noites não fossem suficientes para recuperar, Elliot ignorava a fadiga e continuava. Talvez aos olhos de outros isto seria quase como um caminho para uma morte mais rápida, mas era precisamente o contrário. Era este tipo de atitudes que ainda o mantinha no mundo dos vivos.
O jovem acordava sempre por volta da mesma hora. Um ou dois minutos antes ou depois, mas nunca falhava redondamente nos seus deveres matinais por não se haver levantado. Era um hábito que havia incutido á si próprio faz uns longos anos, desde que era criança. Na altura, Adelia, sua empregada, era quem estava encarregue de o acordar, com ordens vindas da própria criança, e com o passar do tempo deixou de ser necessária, tal como uma mãe deixa de ser necessária para estar presente a tempo inteiro com o seu filho.
Adelia servia aquela casa há cerca de trinta e cinco anos. Sempre cuidara do seu amo como um filho. Quando viera trabalhar naquela casa, ainda muito jovem, com os seus dezassete anos talvez, esta ainda era habitada pelos avós de Elliot e seu pai, ainda nos seus quatorze. Foi parar lá por indicação de uma outra família abastada sabendo que os Ashmore, família de Elliot, necessitava de uma serviçal. Sempre cumpriu o que lhe era pedido ainda mais do que o que era de sua função, então foi ficando tornando-se parte da constituição da casa. Vira o pai de Elliot cortejar e enamorar-se de Delphine que tão precocemente falecera, vira os avós de Elliot partirem, primeiro um, e logo se seguindo o outro. Presenciara os choros intermináveis do jovem casal para tentar conceber, pois Delphine tivera mais do que um aborto espontâneo durante as tentativas, e uma vez que tinha conseguido finalmente dar vida a um descendente toda a casa transbordara de felicidade. Todavia tivera sido uma bonança de pouca dura, depressa perceberam que a pequena criatura padecia do mesmo mal que sua mãe, fazendo-a sentir-se interminavelmente culpada. Sempre que carregava Elliot no colo carregava também um saco de culpa, ainda que não a merecesse, como poderia ela ter dado ao seu próprio filho uma sina tão tumultuosa? Será que chegaria á idade adulta? O que seria dele quanto ela morresse, quanto todos por fim partissem. Todas estas preocupações talvez sejam o que realmente tenham levado Delphine ao seu colapso e não somente a sua doença.
Desde aí, e até muito antes disso, Adelia cumpria a função de uma mãe para o seu mestre, que não tinha mais de 8 anos quando a mãe partira. Adelia sempre o observou de longe, e fez parte de todas as suas vitórias. Não que Elliot nunca a tivera dispensado do seu serviço. Mais que uma vez este lhe oferecera um cómodo da casa para se mudar, e que poderia abandonar os seus serviços e aproveitar o resto de uma vida serena dentro da mansão, não como uma servente mas como uma dama. Mas aproveitar esta oferenda generosa não estava em nenhum dos planos desta mulher, seria ir contra toda a sua humildade que tanto presava. Por muito tentador que lhe parecesse, sabia que não necessitava de nada mais do que aquilo que já tinha. Nunca, nem uma única vez, houvera falta do que comer ou de onde dormir, sempre levara uma vida digna e sentia um certo orgulho em trabalhar e sentir-se útil, e nisso ambos se conseguiam perceber. Trabalhar para algo, ter uma função, objectivos, era o que os mantinha vivos. Já nos seus cinquenta e muitos, Adelia ocupava a função de governanta da casa. Era ela que decidia a função de cada grão e pó daquele edifício e das pessoas que por lá passavam. Agora já se sentia cansada e já não ocupava funções de limpeza ou cozinha, mas geria aquele sitio melhor que ninguém.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Um campo de Lírios Brancos
Fiksi SejarahO tempo é a era vitoriana, mais precisamente 1857, em Inglaterra. Elliot é um jovem herdeiro de uma família fidalga, recomendado pelos seus bons modos, pelas suas virtudes, pelas suas crenças humanitárias, e sua indulgência. No entanto, padece de...