Arte

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"O que eu tinha na cabeça?" era a única pergunta que não abandonava a mente de Artemísia.

De todas as coisas que ela podia ter feito para se humilhar, durante toda sua vida, beijar Theodoro havia sido a pior delas. Era pior que aquela vez em que se vestira de cachorro quente em uma festa fantasia em que todas as garotas estavam com alguma fantasia sexy. Era tão humilhante que Arte, em seu caminho para casa, não conseguia reviver o momento sem enterrar o rosto nas mãos, o que fazia os passageiros do metrô encararem-na.

Arte queria dizer a eles que ela era a garota mais idiota do mundo. Arte queria, na verdade, ir atrás de cada um dos seus autores favoritos, com uma faca em mãos, e perguntar de onde eles tiraram que a moça recatada e o popular ficavam juntos no fim das contas. E não, Arte não esperava ficar com Theo, não de um jeito permanente. Não além de um beijo. Como ela mesma já havia concluído, aquela não era a sua história. Mas beijá-lo não parecia algo tão ruim quando ela decidiu fazê-lo.

Quando desceu na estação do Flamengo, Artemísia correu até sua casa o mais rápido que pôde, parando para respirar só quando já estava salvo, dentro da sala de estar do apartamento onde morava. Ou não, já que sua madrasta estava lá, com uma revista em mãos, encarando-a.

— O que aconteceu, querida? — a preocupação era evidente. Ela fez um gesto com a mão, indicando o lugar ao seu lado para Arte se sentar. — Aconteceu alguma coisa?

— Ah, eu peguei a escada ao invés de subir pelo elevador — Artemísia mentiu. — Esforço físico faz bem.

— Claro — a mulher estreitou os olhos. — Além disso, aconteceu alguma coisa? Você parece inquieta desde...

O jantar na noite anterior. Arte sabia. Ela estava inquieta desde o dia anterior, quando Theodoro caíra de paraquedas em sua vida, mas naquele momento era um milhão de vezes pior. Ela o havia beijado. E, pior ainda, Theodoro, o garoto que beijara metade do colégio, a tinha segurado pelos ombros, como se ela fosse uma criança fazendo algo errado.

— Não é nada.

— Você não ia ao cinema com a Ana hoje? Ela ligou procurando por você...— a mulher levantou uma das sobrancelhas. As mentiras de Arte estavam quase indo pelo ralo abaixo. Mas, como boa contadora de histórias que era, a garota se apressou em elaborar algo que a encobrisse.

— Eu ia, mas fiquei ocupada com Theodoro — decidiu contar parte da verdade. — Decidimos resolver algumas coisas para semana que vem e aí eu acabei cancelando com a Ana.

— Por isso está tão irritada? Por causa do Theo?

— Sim — não era mentira. — Ele é... — Arte grunhiu.

— Ele te leva ao limite, né? Já trabalhei com gente assim — a madrasta de Arte mostrou condescendência. — Você só precisa relaxar. Foque no trabalho que precisam fazer juntos, não na companhia dele, e então será fácil.

Aquele conselho era como uma bofetada. Focar na companhia dele era exatamente o que Artemísia vinha fazendo e era exatamente o que a levara a beijá-lo. Tudo que ela precisava fazer era focar em seu trabalho, como sempre fizera, mas não parecia tão fácil quando sua antiga paixonite estava tão perto. Perto o suficiente para beijá-la...

Ou não.

Mais uma vez, Artemísia escondeu o rosto com as mãos, com vergonha de si mesma. O gesto chamou atenção de sua madrasta, que respondeu com um olhar curioso e preocupado.

— Arte, está tudo bem?

Artemísia levantou a cabeça, duplamente envergonhada por ter sido pega sentindo vergonha.

— Sim, só estou cansada. Vou dormir um pouco, ok?

— Ok. Bom sono.

Artemísia correu para o quarto, se jogou na cama e cobriu-se até o pescoço, fechando os olhos com força. Se dormisse, podia fugir dos próprios pensamentos embaraçosos e ignorar a preocupação com o que faria no dia seguinte, quando cruzasse com Theodoro nos corredores ou no intervalo.

Por dois anos, Artemísia tinha até mesmo esquecido da paixonite que tivera por Theodoro, ou era exatamente o que queria acreditar. Por dois anos, tudo tinha acontecido da maneira que ela esperava — algumas amizades a menos, sim, mas é o tipo de coisa que acontecia no ensino médio. Entretanto, ali estava ela, obrigando-se a pegar no sono para não lidar com antigos sentimentos que ameaçavam vir à tona.

Um tempo depois, Arte dormiu. Seus sonhos foram recheados de sorrisos simpáticos e beijos roubados na biblioteca.

. . .

Artemísia estava mais sonolenta do que já estivera em toda sua vida. Mal conseguia se localizar no próprio quarto e não podia se lembrar de ter ido dormir na noite anterior.

Porque não tinha. As memórias do dia anterior atingiram-na com ferocidade. Lembrou-se de ter ido dormir para esquecer sobre sua estupidez, mas ali estava ela, esperando que a garota abrisse os olhos para lembrá-la de que não havia como fugir daquilo.

Checando o celular, Arte viu que eram pouco mais de 5h00, quase a hora dela acordar se tivesse ido dormir em seu horário normal. Artemísia tinha dormido por aproximadamente treze horas, o que explicava sua sonolência incomum.

Levantou-se tentando se convencer de que não era o fim do mundo. É, pessoas beijavam as outras o tempo todo. Pessoas levavam um fora o tempo todo, não tinha porque ficar remoendo aquilo pelo resto da vida. Assim que encontrasse com Theodoro, agiria como se nada tivesse acontecido e seguiria sua rotina normal. Se tinha que conviver com o garoto por mais três meses, não poderia ficar envergonhada todas as vezes em que olhasse em seu rosto e se lembrasse de como se inclinou pateticamente e o beijou. E sobre como ele a afastou, com um aviso contido. "Arte", Theo disse. Ele nem se dera o trabalho de dizer seu nome. Era como chamar a atenção de uma criança pequena quando ela faz algo que não sabia que não deveria fazer. Como dizer ao seu cachorro que não pode morder a almofada quando ele pensa que você não pode vê-lo. Era como... Epa! Caminho errado. Ela precisava pensar positivo.

Positivo. E foi assim que se manteve enquanto se aprontava para a escola e quando pegou o metrô. Manteve-se positiva mesmo com todo o peso da mochila e da consciência. Fingiria que nada havia acontecido. Nada de beijo, nada de nada. Theo era só mais um garoto no mundo e Arte já havia definido que não permitiria que garotos ditassem sua vida.

Vestindo a camisa branca de botões do uniforme, uma calça jeans, seu par de oxfords pretos e muita coragem, Artemísia atravessou o pátio da escola, o queixo paralelo ao chão. Os pensamentos da garota estavam tão convencidos que ela acreditava que poderia voar, se não fosse por sua mochila ainda mais pesada que no dia anterior. Às vezes Arte achava que cairia para trás e seria como uma tartaruga, barriga para cima e sem conseguir virar. Não era o caso daquele dia porque, antes que Arte sequer pudesse entrar no prédio da escola, lá estava Theodoro e sua maldita cara simpática.

— Credo, Arte. Sua mochila parece pesada pra caralho. Vou levar pra você — e pegou a mochila da garota.

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