fifty nine

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— Oi, linda. Eu trouxe alguns papéis em branco e alguns de seus cadernos com anotações antigas...

            Olho para o Rafa. Dou um pequeno sorriso e volto a olhar pela janela. Estava chuviscando; eu podia sentir o cheiro da grama molhada. Eu gostava daquele cheiro. 

            — Obrigada. 

            — Achei que pudesse ajudar. — Rafa diz, gentil e prestativo como sempre.

            Solto um suspiro. 

            — É maravilhoso. Obrigada, mesmo. Mas você esqueceu os chocolates, não acha? — falo, sorrindo. 

            Ele parece procurar algo dentro das sacolas. Então, ele tira de lá a barra do meu chocolate favorito. Ele vem ao meu encontro, me fazendo prestar atenção nele.

            Rafa senta no chão ao meu lado, abrindo caminho e meio aos livros, cobertores e todas as coisas que espalhei pelo chão.

            — Eu não esqueci de nada. — diz, com um sorriso cafajeste nos lábios.

            — O.k.— digo, e trocamos um pequeno sorriso.

            Eu estava em uma daquelas semanas negativas. Mais uma

            Pensei que a essa altura o Rafael já teria corrido. Ah, a Ayra e essas crises, não aguento mais!; ele diria, talvez. Mas ele ainda estava ali.

            Ele estava encarando minhas meias e começou a rir.

            — Ainda é aceitável usar meia de princesas?— ele perguntou.

            — Dane-se. — respondi, rindo.

            Agora nós tínhamos algo parecido com uma amizade. Ele sabia do Lucas, sabia do que tínhamos tido. E apesar de muita insistência, concordamos que seria melhor para nós dois manter as coisas o mais estável possível. Pelo menos por agora, o apenas amigos tinha de servir. 

            — Pensei que seria bom vir te ver... de novo. — ele fala. — Alice estava meio ocupada: Benjamin tinha mais um jogo de basquete. 

            — Tudo bem.

            — Como você está?

            Dou de ombros. 

            — Francamente, Ayra, você é complicada assim mesmo ou está me testando pra ver se eu aguento?

            Dou uma risadinha. 

            — Os dois. É demais para você?

            Ele da de ombros, sorrindo calmamente.

            — Já tivemos dias melhores. 

            — Me dá um pedaço desse chocolate. — peço, mudando de assunto o mais sutilmente possível. 

            Ele me entrega a sacola com o chocolate e cruza as pernas. Abro o pacote e logo arranco um pedaço. 

            — Sabe que ainda não desisti de você. — ele fala. 

            — Mmmmm. — é a única coisa que eu podia dizer.

            Ele balança a cabeça, com um sorriso decepcionado no rosto. 

            — Achei que você pudesse conversar disso comigo sem que isso acontecesse.— ele diz, e se volta para a chuva que caía lá fora. 

            — Com "isso" você quer dizer o que?

            — Esse clima tenso entre a gente. Pensei que se sentisse confortável comigo. 

            — Ah, é complicado. — falo, lambendo as pontinhas dos dedos que estavam melecadas de chocolate. 

            Ele me encara por um momento longo demais, mas não ficamos desconfortáveis. O Rafael era uma pessoa importante demais pra mim. Ele fez parte da minha vida. Às vezes eu duvidava de que o tinha esquecido, que já o tinha deixado para trás. Em momentos como aquele, eu dizia a mim mesma que eu era dele. Eu ainda era aquela menina apaixonada pelo Rafael. Faria tudo de novo. E meu esquecimento por ele não passava de uma mentira que eu contava a mim mesma. 

            Por fim, ele deu um sorriso.

            — Descomplica, Ay. 

            Abaixo os olhos. 

            — Desculpa, Rafa. Eu... eu tenho sido tão injusta com você, e você tem feito tanto por mim. Eu só preciso que as coisas continuem como estão. Não sei se quero mais dor, entende?— ele assentia. — Sinto que estamos conectados, de uma forma, tipo, bem grande. — ele sorri. — E eu não quero estragar tudo de novo. Não agora; não assim. 

            Ele ouvia com cuidado e assentia. Sua decepção era evidente.

             — Pode viver com isso?— pergunto.

            — Claro, Ay. — ele responde.— Só não quero perder você de novo. Com o resto eu consigo lidar. 

            Dou um sorriso calmo. Procuro a mão dele, que logo agarra a minha. 

            Deus, era tudo tão familiar. As carícias de dedo; o modo como nossas mãos ainda se encaixavam perfeitamente; o cheiro que vinha dele; o modo de me olhar e até de sorrir para mim; o modo de dizer que não queria me perder. Era tudo tão... nosso

            Rafa me pegou encarando nossas mãos dadas e levantou meu queixo com a mão livre, até que pudéssemos nos olhar nos olhos novamente.

             — Amigos, então? — ele pergunta.

            Embora eu soubesse o quão tentadora era aquela pegunta, pensei nos últimos meses e em tudo o que já passamos. No quanto sofremos pelas nossas escolhas; e embora eu ainda amasse o Rafael, eu não queria tentar nada agora. Pelo menos, não agora.

            Era a garantia de um tempo a mais. 

            — Parece ótimo para mim. — concordo, ele abre os braços para me abraçar.


Eu tinha feito todos esses planos que envolviam o Lucas e hoje eles não existem mais. Seria engraçado se não fosse trágico — como as coisas mudam gradualmente, e depois de um tempo aquela pessoa que você considerava tão vital  na sua vida  já não está mais lá.

            E você continua respirando, você continua vivendo mas uma parte de si mesmo ficou para trás, há um rombo no teu coração e você sabe disso porque doí e arde e queima, e o gosto na sua boca é de algo que morreu há muito tempo. 

            Nem mesmo os detalhes de mim permaneceram desde que o Lucas se foi. Mudei os quadros na parede, aprendi a cozinhar, comprei novos sapatos e frequento novos lugares. Até experimentei novas festas e me embebedei com outras bebidas ao invés do usual. 

          Eu me reinventei completamente (ou quase) e mudei o corte de cabelo, porque o antigo me lembrava muito do jeito com que os dedos dele corriam por entre meus fios cor-de-mel. E eu escrevo agora sobre fins que na verdade são recomeços. Aqueles que por tanto tempo fingi temer e amar. 

            Dói crescer, dói mudar. Só dói, mas eu não tenho que sofrer o tempo todo por isso. Porque a dor do fim não me define. Nem mesmo os passos lentos pra um recomeço

            Eu vou no meu tempo. Tá tudo bem. (ou pelo menos vai ficar.)








  

Menina, maré.Onde histórias criam vida. Descubra agora