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DANIEL

Lave a tristeza para fora da minha pele e me mostre como ser inteiro novamente, porque sou apenas uma rachadura neste castelo de vidro.

(Castle of Glass Linkin Park)


Eu acordei. Uma, duas vezes. E me levantei e voltei ao quarto e fiz tudo de novo. Sabia que estava sendo estúpido, mas não pude evitar. Tomei mais comprimidos, me senti mais entorpecido, mais fraco, mais pesado. E caí. E dormi. Apaguei. Primeiro, sem sonho algum. Tanto que achei que estivesse morto. Se a morte era aquilo, até que não achei tão ruim. Mas se eu estava pensando sobre isso quando despertei, então não estava morto. Principalmente porque eu despertei.

Despertei para o escuro, para o vazio, para o frio, onde só ouvia minha própria voz. Depois, ouvi a voz da minha mãe. Ela me chamava ao longe. Eu queria ir, mas tinha medo, então quis correr. E a voz dela ficou longe, longe, longe, até sumir.

Eu me vi num campo aberto e meus pés eram pequenos demais para correr tanto, então eu tropecei. Fui abraçado pelo meu pai, que me ergueu de volta, mas ele estava muito mais jovem do que me lembrava, e tão logo fiquei de pé ele correu novamente. Chamei por ele, primeiro sem entender, mas enfim captei seu sorriso e entendi que ele estava esperando que eu o seguisse. Eu o segui, inseguro, olhando para trás a todo instante, procurando pela minha mãe, tentando ouvir sua voz outra vez.

Numa das vezes que olhei, eu a vi. Ela corria atrás de mim, comigo, e sorria também. Sorria abertamente. Seu cabelo voava ao vento. Ela estava linda. Senti vontade de parar e diminuí o ritmo da corrida, mas ela ralhou comigo.

– O que você pensa que está fazendo? Você não pode deixar seu pai ganhar!

Eu olhei para frente mais uma vez e vi que meu pai estava muito distante, era impossível que eu conseguisse ultrapassá-lo. Como se sentisse meu olhar sobre ele, vi quando se virou. Numa tentativa muito fracassada de ser sutil, ele diminuiu seus passos, permitindo que eu o alcançasse. Eu corri com mais força, o mais forte que minhas pernas pequenas e finas conseguiram suportar, e estava quase ficando lado a lado com ele quando ele retomou seu ritmo e correu mais rápido. Eu gritei, frustrado, e ele riu.

Aí eu me lembrei. Aquilo já tinha acontecido antes, era uma lembrança. Este mesmo momento tinha ocorrido anos atrás, quando eu tinha uns oito ou nove anos de idade. Que lugar era aquele? O sítio do meu avô, eu lembrei. Eu e meus pais estávamos apostando uma corrida para ver quem chegava primeiro ao açude que ficava não muito longe do terreno.

Eu arfei, cansado, e mais uma vez meu pai desacelerou. Fingi que estava desistindo, ele parou quase completamente. Quando ficamos em linha reta um ao lado do outro eu inclinei meus joelhos e corri novamente. Corri, corri, corri, sem olhar para trás. Ouvi a risada alta da minha mãe.

– Vai, Daniel! – ela gritava, me estimulando.

Meu pai ria também, mas gritava em outro tom, me chamando de trapaceiro.

– Assim eu não posso com você, Daniel. Assim eu não posso com você.

E quando eu vi o açude no horizonte, mais perto do que nunca, minhas pernas encontraram a força que faltava para acentuar a corrida. Porém, ao invés de a voz do meu pai se tornar mais baixa e distante, ela estava cada vez mais alta, como se ele estivesse falando bem no meu ouvido.

– Assim eu não posso com você, Daniel. Assim você me quebra.

De repente, tudo ficou claro. Uma luz que quase me cegou e clareou toda a minha consciência me trouxe de volta para o mundo real. Eu abri os olhos, que ardiam com a claridade, mas aos poucos se acostumaram e puderam visualizar o quarto limpo e arrumado em que eu me encontrava. Meu pai estava bem do meu lado.

– Me diz o que eu faço com você?

Eu queria respondê-lo, mas minha voz não saía. Meus olhos fecharam outra vez e tudo ficou preto.

A lembrança seguinte foi fácil de reconhecer. Eu estava na sala principal da minha casa, a sala de entrada. Ao invés de sofás velhos e desarrumados e um controle de televisão jogado na mesa de centro, haviam pessoas sentadas lado a lado num sofá que ainda estava novo e limpo. A TV estava desligada, todos olhavam em outra direção. No canto lateral da sala, minha mãe tocava seu violino. Olhei para baixo, para minhas mãos que se moviam além do meu controle sobre teclas pretas e brancas. Eu estava tocando piano no canto oposto. O velho piano que agora estava na sala de músicas da escola.

De frente para mim, do outro lado do piano, estava meu pai, com um olhar atencioso e orgulhoso que se revezava de mim para minha mãe. A música que tocávamos era Hallelluyah, era nossa canção ritualística de Natal. Esta era uma lembrança recente, de apenas quatro anos atrás. Tão perto do fim e eu nem fazia ideia.

Fitei minha mãe mais uma vez enquanto sentia as imagens ficarem distantes e outra cena tomava conta.

A mesma sala, desta vez vazia de outras pessoas além do meus pais e eu, que assistia tudo ao pé da escada.

– Eu não vou voltar para aquele lugar. É horrível. – Minha mãe rosnava, visivelmente perturbada.

Meu pai estava mais calmo, porém seu tom era sério

– Foi só uma visita.

Ela riu, revirando os olhos como se não pudesse acreditar no ridículo que havia sido sua fala.

– Isso é o que você diz. Eu sei muito bem quais são seus planos.

– Você sabe que é o certo. – Meu pai argumentou. Eu me encolhi em meu canto, sabendo exatamente o que ele diria em seguida. O que viria a seguir. – Você sabe que o melhor para você é ser internada.

– Não ouse, Leo. – Ela sibilou, já virando-se de costas para ele, pronta para atacar quando ele se aproximasse.

Eu sabia o que viria a seguir, o objeto que ela iria jogar, a forma como iria gritar. Eu sabia que correria para o meu quarto e depois ouviria a porta bater, deixaria que ela entrasse e não contestaria quando ela me arrastasse até o carro e me levasse para a praia. Para a nossa praia. Não queria ver aquilo tudo se repetir. Mas não vi. Ao invés das cenas que eu me lembrava, ouvi a voz do meu pai repetir:

– O melhor para você é ser internado.

Internado. Ele não se referia a minha mãe.

Mais uma vez sua voz soava perto demais. Ele estava falando comigo na vida real, na sala em que eu estava preso e sendo forçado a vivenciar todas essas lembranças. Não houve clarão, não pude abrir os olhos como antes, mas ouvi quando uma voz feminina se interpôs à dele:

– Não, Leo.

– Eu não sei mais o que fazer. – meu pai murmurou, soando destruído.

– Essa não é a coisa certa. – a outra voz insistiu.

– E o que é a coisa certa?

Sua pergunta parecia desolada, como se procurasse uma resposta que já conhecia muito bem e talvez não gostasse tanto assim. A voz feminina não voltou a se pronunciar, mas eu senti algo diferente perto de mim. Um calor novo, me acolhendo, me aconchegando. A escuridão veio lentamente me levando de volta ao sono profundo, mas desta vez, não estava frio, então eu não senti medo.

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