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D A N I E L

Tudo o que eu preciso é me lembrar de como era me sentir vivo.

(Winter Bird AURORA)


Não foi tão difícil escapar do teatro montado para mim. Eu só precisei dizer o que eles queriam ouvir.

– Eu não queria ter feito aquilo.

– Mas você sabe que fez. – Eles responderam. – Então por quê?

– Eu não estava pensando direito. Não foi a decisão certa.

E pronto. Estava feito. Eu não era mais o perigo em potencial.

Havia passado de "o adolescente perturbado" para "este pobre garoto deprimido". Foi mais ou menos fácil convencê-los de que havia sido apenas um momento de descontrole. Não iria se repetir. Eu estava desesperado e fiz a primeira coisa que me veio a cabeça. Não achei que fosse funcionar. Ainda bem que Sarah havia chegado a tempo. O que poderia ter acontecido comigo? Eu precisava de ajuda.

Devo admitir que senti muito tédio durante o tempo que fiquei no hospital. Nunca gostei de psicólogos, sempre detestei médicos em geral, então não foi preciso muito esforço para me incomodar. Sempre as mesmas perguntas, a mesma rotina, os mesmos assuntos. "Como se sente? "Péssimo". Teve algum pesadelo? "Minha vida é um" - eu respondia para mim mesmo. Eles jamais entenderiam e eu sabia que não valia a pena explicar. Então usei a tática infalível: disse o que eles queriam ouvir.

"Sim, eu estou bem. Não, sem pesadelos. Minha família é meu maior suporte. A vida é bela". Fácil, não é? Mas levei um tempo até convencer.

Difícil mesmo foi o meu pai. Como fazê-lo acreditar que eu não queria realmente morrer e estava apenas extravasando uma dor que era incapaz de exteriorizar quando perdi o controle de tudo? Cortar os pulsos teria sido mais eficiente.



≈ ≈ ≈



– Se você me ama, você não vai me deixar ir.

Minhas palavras ressoam em minha mente na forma de sussurros que ecoam de todas as direções. As imagens saltam, piscam, se agitam, inebriando minha consciência com lembranças que quero apagar. A expressão incerta de Sarah, o olhar assustado do meu pai. Medo, confusão, atordoamento, decepção.

– Não me deixe ir, por favor.

Decepção, ele estava decepcionado. Não precisou me dizer nada, nem ele nem ninguém. Estava claro pela forma como me olhara. Ainda que parecesse tão óbvio para mim, para ele havia sido algo completamente novo, inesperado e, o pior de tudo, decepcionante. Aquilo me atingiu em cheio como eu jamais pensei que poderia. Tão forte que me fez prometer coisas que eu sabia que seria incapaz de cumprir.

– Eu vou melhorar, eu prometo. Não me deixa ir.

Eu tinha um acordo comigo mesmo que consistia em nunca fazer promessas. Prometer é uma coisa intensa, séria, comprometedora. Quando você se compromete com algo, é como se você estivesse assinando um juramento que vai além das palavras. Uma promessa é uma via de mão dupla para quem promete e para quem é prometido. Há um depósito de fé, de expectativa, você está cultivando a esperança em alguém, a ânsia, o desejo de que sua promessa seja cumprida. Um acordo, um laço. E se você não conseguir fazer aquilo que propôs? Você não vai estar decepcionando apenas a si mesmo, mas a outras pessoas também. Estará sendo responsável por si e sua falha e mais as consequências que isso causou nas pessoas que contaram com você, que acreditaram em você.

– Pai, por favor.

Talvez tenha sido um golpe baixo. Chamá-lo de pai, eu digo. Há tanto tempo que não olhávamos um na cara do outro que não havia me dado conta do quanto ele estava envelhecido, seu semblante cansado, o encarar soturno, a ponta dos lábios curvadas para baixo como se desde quando ele ainda estava sendo formado já soubesse que não seria contente com as coisas que encontraria aqui fora. Suas sobrancelhas se ergueram quando ele me ouviu chamá-lo de pai. Certamente ele não esperava por isso. Nem eu.

Foi algo que surpreendeu até mesmo a mim. Simplesmente saiu, escapou sem que eu me desse conta e quando vi já era tarde demais, mas talvez tenha valido a pena.

– Se você me ama, você não vai me deixar ir – minhas próprias palavras se repetem em minha mente outra vez.

Eu ouvi quando o médico falou de mim para eles, Sarah e meu pai. Ouvi o que ele falou e como ele falou, a preocupação evidente em sua voz carregada de experiência. Eu vi quando Sarah olhou para ele como se concordasse com tudo o que ele dizia e vi também o quanto meu pai estava tentado a concordar também. Vi a batalha interna que ele travou naqueles poucos segundos em que ouviu minha negação e percebi que iria perder pela forma como ele meneou a cabeça e baixou os olhos para a cama onde eu ainda estava deitado.

O plano era me levar para uma clínica de tratamento. Acompanhamento psiquiátrico, psicológico, psicoterapia, consultas semanais e remédios. Remédios. Eu não poderia suportar isso. Não poderia me abrir para um estranho, mais um na minha lista de fracassos e mágoas. Outra pessoa para prometer o que não cumpriria, contar mentiras e me fazer acreditar em cada uma delas, para então me deparar com a realidade podre e infeliz mais uma vez. Não.

A água quente escorre pelo meu corpo e é engraçado como eu estou tomando banho há mais de 10 minutos e ainda me sinto tão sujo. O médico que me cuidou de mim no hospital me disse que eu precisava do tratamento que ele estava sugerindo, ou melhor, encaminhando. Era o certo.

Eu implorei ao meu pai, e, ao ouvir meu apelo, a forma calculada como usei o amor do meu pai e minha vontade de voltar para casa para manipular sua decisão, o médico contrapôs, incisivo:

– Se você ama seu filho, você vai fazer o que é melhor para ele.

E naquele momento, quando Leo se aproximou de mim e tocou meu braço, dando o sinal que eu precisava para saber que ele estaria do meu lado para realizar a minha vontade, eu senti a pressão do que estava realmente acontecendo ali e me perguntei, por apenas um curto momento, se meu pai estava tomando a decisão certa, e se esta não era o que o médico propunha, além de ser o que eu verdadeiramente preferiria que meu pai fizesse, mesmo que contra a minha vontade, mas ainda por amor a mim.

No fundo, lá dentro onde eu mal podia enxergar ou sequer sentir, eu sabia a verdade. Sabia do quanto eu precisava, do quanto era difícil, e reconhecia que jamais conseguiria sozinho. Apesar de não sentir como se estivesse exatamente vivendo, eu estava vivo, só tinha que me lembrar disso às vezes. Saber viver é complicado. Jamais conseguiria sozinho - e não tinha forças para admitir que precisava de alguém. Aquele era meu momento. Ao menos deveria ser.

Dando razão a dúvida, deixando que ela se tornasse mais audível, tomei a decisão que me pareceu mais segura. Onde, no mesmo lugar onde eu sentia bater a vida, sentia bater a incerteza de querer continuar vivendo.

Pedi para ficar, prometi mudar, menti feio. E acreditaram em mim. Não sei quem foi mais burro, eu ou eles.

Fosse o que fosse, agora, finalizando o banho que corri para dar assim que cheguei em casa, na minha casa, eu penso: é tarde demais.

AfogadosOnde histórias criam vida. Descubra agora