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D A N I E L

Eu vi que o céu me atrai bem mais o que o chão, mas é tão cruel contemplar sozinho a imensidão.

(O Resto É Nada Mais Fresno)


Eu resolvo sair de casa. Tenho uma ideia.

Quando Sarah pergunta, desconfiada, digo que estou indo dar uma volta. Ela me observa enquanto ando pela calçada, posso sentir seus olhos em mim.

Pego meu ônibus de sempre, sabendo exatamente onde vou descer. Na praia, é claro.

Minha mente foge para Alissa de vez em quando, mas eu a afasto para longe. Penso que fui rude, mas não tenho certeza. Se fui, não tive a intenção. Estava distraído, imerso em pensamentos, pensando na minha própria existência. Não queria ser interrompido, não queria ser atrapalhado, trazido para o mundo real. Às vezes é mais fácil ficar apenas no mundo das ideias.

Estou um pouco triste por precisar pegar ônibus, pois preferia andar a pé. Sento no lado da janela, observando as pessoas lá fora. Imagino quantas delas são realmente felizes, quantos problemas não devem atormentá-las. Imagino o ônibus perdendo o controle num viaduto que faz uma curva e vejo o automóvel caindo, comigo dentro, em cima de outras pessoas. Olho para o interior do ônibus, contando as poucas pessoas. Oito, além de mim mesmo. Oito diferentes histórias que poderiam acabar ali mesmo numa fração de segundos. Uma tragédia qualquer, que destruiria sonhos e vidas. Quão frágil é a vida.

Meu olhar cruza com o de uma garota sentada duas cadeiras atrás da minha, do outro lado. Ela me encara com firmeza, seus olhos grandes e escuros sustentando os meus. Ela não deve ter mais de quinze anos. É bonita, e eu não consigo deixar de pensar até quando vai carregar esse ar de ingenuidade quase infantil, de quem acha que a vida só é terrível quando não consegue conquistar o garoto dos sonhos ou ir ao cinema com os amigos no fim de semana. Sinto inveja. Queria ainda ter esse mesmo brilho.

A garota cede primeiro, virando para a janela. Menos de cinco segundos depois, ela olha mais uma vez para mim, para checar se ainda estou a observando. Estou. Seus olhos se abrem um pouco mais que o normal e seu rosto moreno ruboriza. Ela não me encara mais. Eu volto a olhar pela janela

Minutos depois, quando puxo a cordinha pedindo parada e ando pelo corredor com as duas mãos segurando nas cadeiras de cada lado do corredor, olho para a garota mais uma vez. Ela tenta parecer casual ao passear a vista por todo o ônibus, mas quando seu olhar passa por mim e para por um segundo a mais do que o normal, eu sei que ela me vê novamente. Sigo em frente sem olhar para trás, mas os cachos armados da garota ficam na minha mente por um tempo enquanto ando pela calçada até a escada de madeira que me dá acesso à areia da praia.

Eu pedi parada num ponto depois de onde costumo descer, então não vejo o comerciante ambulante que sempre guarda meus sapatos e mochila. Foi proposital e eu não me importo em andar calçado pela areia, apesar de isso tornar a caminhada mais lenta.

Eu caminho, parte de mim querendo ser guiado pelo vento, a outra parte sabendo exatamente aonde vai. Não me aproximo muito da água, hoje não quero me molhar, mas não deixo de observar o mar, o céu e a linha do horizonte que os separa.

Me sinto minúsculo, insignificante, em comparação a todas essas coisas, mas continuo caminhando, engolindo minha insignificância e meu pouco tamanho.

Ando porque quero pensar, mas também ando porque quero esquecer, e entre um e outro, acabo não conseguindo obter nenhum dos dois. Muita gente está frequentando a praia hoje, mas não olho para ninguém em particular. Não quero ver seus rostos e imaginar sobre seus destinos.

Quando o barulho do mar é sufocado pela fala e pelo riso das pessoas, eu de volta calçada e continuo meu caminho de lá, sempre em linha reta, nunca olhando para os lados ou para trás. O sol fica cada vez mais quente e sinto meu rosto suar, mas estou decidido. Subo pelo asfalto recém colocado da ponte, entrando no espaço destinado a ciclistas e caminhantes. Passo minhas mãos pela pequena mureta com uma barra de metal para a segurança de quem passa por ali. Hoje não sei dizer se ela é minha amiga ou inimiga.

Estou cansado, meus passos estão mais pesados, mas me esforço para não diminuir o ritmo. Agora que cheguei aqui, não quero voltar atrás.

Eu ando com cada vez mais força, ansioso para chegar ao ponto final. E, quando finalmente chego, respiro de alívio. Apoio meus braços cruzados na barra e olho para o horizonte, depois descendo lentamente a visão pela água. Paro por um momento no local exato em que o rio encontra o mar, a mistura de cores, de águas. O mar esverdeado e o rio marrom num abraço torto e desajeitado. Pequenos barcos navegam para a margem do rio. Pescadores da região, provavelmente.

Continuo olhando, deixando que a paisagem leve meu olhar até onde estou ansiando e evitando encarar. Até que paro, finalmente, olhando no espaço entre a barra e o muro, e depois, devagar, além da barra, bem para baixo, para o ponto exato da água abaixo de mim. Alto, alto, alto. É só o que consigo pensar. E um frio sobe pela minha espinha junto com esse pensamento.

Repreendo meu medo, envergonhado com meu fracasso, mas me forço a continuar olhando para a água lá embaixo. Escura, com correntezas fortes, o que terá abaixo dela? Rochas? Peixes? Lixo? A praia não é tão poluída, mas o rio é até demais. O rio contamina o mar, sufoca a beleza que ele carrega. Exatamente como eu faço com outras pessoas.

Encosto minha cabeça na barra metálica onde meus braços estão apoiados e fecho os olhos, me concentrando no barulho dos carros que atravessam a ponte, no ar soprando próximo aos meus ouvidos e na água seguindo seu percurso metros abaixo de mim.

Dou uma nova espiada, avaliando a posição em que estou e a água escura me chamando com toda a sua beleza e grandiosidade. Como eu ficaria misturado  a essa água? Provavelmente não muito bonito.

– Tudo bem aí? – a voz de alguém me desperta.

Ergo o rosto e encontro um ciclista que parou para conferir como eu estava. Não é estranho. Essa ponte é carregada de maldições. Dezenas de pessoas já se jogaram daqui desde que ela foi inaugurada, há cinco anos.

– Sim, tá tudo bem – eu digo, mas tenho certeza de que minha voz não soa confiável.

O homem, na casa dos 30, olha para os lados e depois para mim de novo, como se pensasse no que fazer.

– Já tô indo embora – eu tento mais uma vez, para tranquilizá-lo.

Ele acena com a cabeça, mas não parece acreditar em mim.

– Posso te acompanhar, se quiser.

– Não precisa. Eu vou pro lado oposto ao que você está indo.

– Ah, certo.

Nós nos encaramos. Ele espera que eu vá embora, mas eu espero o mesmo dele. Acho que ele não vai embora até ter certeza de que eu fui também. Penso que ele está sendo um pouco ridículo, o que ele tem a ver comigo? Por que não cuida da sua vida? Mas não quero causar confusão ou chamar atenção de outras pessoas, principalmente porque um grupo de adolescentes vem vindo e já os imagino cochichando sobre a situação logo que passarem por nós. Uma novidade interessante para preencher mais um dia de tédio.

Eu aceno para o homem, dando adeus, e viro as costas, começando a caminhar para a direção de onde vim. Olho para trás, conferindo se ele já foi embora, mas ele ainda está parado e olhando para mim. Tento reprimir o gemido de frustração e sigo meu caminho. Atrevo-me a olhar só mais uma vez, quando imagino já estar longe o suficiente. O homem foi embora.

Eu poderia voltar se quisesse. Uma voz na minha cabeça pede para que eu volte. Implora. Não estava tão ruim assim lá em cima, estava? A sensação de liberdade foi maior que o medo. Eu poderia voltar.

Então, antes que mude de ideia, corro para a calçada e aceno para o primeiro ônibus que passa. Não é o que me levará de volta para casa, mas não me importo em dar uma volta a mais pela cidade se isso for me manter longe de certos pensamentos que já não suporto.

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