O Novato

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Uma canção soava no fundo da minha mente, calma e suave, instaurando paz ao meu corpo que antes clamava pela morte para livrar-se da dor. Tentei me concentrar nela e senti um leve gosto de canela na boca, mas não havia um dispositivo para aumentar o volume, e só me restou prestar atenção nas outras lembranças. As mais extensas eram vagas e as imagens breves diziam tudo o que eu precisava saber. Certas coisas eu reconhecia imediatamente e ignorava os cheiros, as cores, os sabores e as temperaturas que as acompanhavam, a maioria nada agradável. Enfim eu estava de frente para o que deveria ser parte da minha identidade e, mesmo que não me fizesse sentir tão bem, importava.

Quando percebi que a onda de imagens tinha se acalmado e finalmente deixado minha mente em paz, percebi que eu estava acordada e que não sentia mais dor, nem o calor da agulhada nem as mãos de Newt. Foi tão aliviante que mesmo assim me deixou cansada. Suspirei ao notar que precisaria abrir os olhos. Sem pressa nenhuma, movi os dedos das mãos, e instantaneamente senti-os doloridos. Apertei mais os olhos com o incômodo. Mexi minhas mãos, meus braços, e abri os olhos ao mexer as pernas. Pelo menos a dor era suportável.

Pouca luz entrava pelas janelas do quarto; devíamos estar no fim do dia. Arrastei meu corpo para cima para me sentar e foi impossível conter o gemido de dor que irrompeu pela minha garganta. Eu estava sozinha ali, apenas com as lembranças e a confusão de sentimentos de tê-las de volta. Encolhi-me contra a parede e abracei meus joelhos, apoiando o queixo neles. Eu queria chorar; parecia ser o único jeito de ter certeza de que eu estava consciente. Mas as lágrimas não vieram, então só contemplei o nada tentando guardar cada parte das lembranças, sentindo meu estômago revirar-se de enjoo.

Após algum tempo, que não pude ter certeza se fora muito ou pouco, decidi me levantar e ir ao banheiro. O corredor e o restante da Sede estavam silenciosos e não havia ninguém à vista. Molhei o rosto com a água fria e umedeci minha nuca com ela. Tentei imaginar se eu parecia tão ruim quanto me sentia.

Saí do banheiro de cabeça baixa e trombei em alguém, que reconheci apenas pela camisa branca de mangas arregaçadas. Quis tanto abraça-lo e desmanchar-me em lágrimas que minha razão falando mais alto de que era melhor não me destroçou. Eu me sentia mal, mas não por tê-lo poupado do episódio horrível que fora a Transformação e, por incrível que pareça, nem por ter tido as lembranças. Simplesmente quis que nada daquilo fosse necessário.

— Nelly?

Sorri de canto ao perceber que sua voz dizendo meu nome assim ainda aquietava-me e que a cor amarela brilhava na minha frente. Parecia ser a única coisa que me tornava otimista. Ergui meus olhos a ele e vi suas sobrancelhas franzidas em atenção e expectativa.

— Que bom que está bem, trolho. — foi a única coisa que consegui dizer tentando sorrir, mas ainda sem a certeza de ter conseguido.

Newt balançou a cabeça como se repreendesse minha brincadeira fora de hora.

— Você parece gostar de ficar doente. — disse e pôs a mão no meu ombro para me guiar ao quarto.

Voltei a me sentar na cama e ele parou de braços cruzados ao lado. O encarei por um tempo e vi que estava intacto, a não ser por uma marca vermelha na têmpora, talvez resultado do meu empurrão. Sorri minimamente outra vez e baixei meus olhos para minhas mãos, torcendo os dedos. Apurei meus ouvidos para ouvir um sermão, um grito ou até uma ameaça. Mas Newt não disse nada.

— Não é tão ruim quanto parece, se quer saber. — falei, erguendo a cabeça de novo.

— Não quero saber como é você ter passado por isso por minha causa. — retrucou. Ele não agradeceria desta vez, obviamente, mesmo que fosse grato.

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