No dia seguinte, fomos chamados por dona Tereza para fazer farinha de mandioca com os moradores locais. A casa de palha no qual estavam os equipamentos para fazer aquele tipo de alimento era bem simples. Tinha a máquina rústica, feita de madeira, para extrair da mandioca o seu líquido e colocavam em garrafas pet formando o tucupi, um liquido muito comum no norte para formar o tacacá.
Depois disso, a mandioca ia para outra parte na qual era amassada, ficando em farelo e então para o forno, que era feito de barro e tinha um imenso prato de ferro no qual a mandioca era posta e assada, sendo mexida com uma imensa colher de mandeira, que tinha o formato de um remo.
— Esses grãos não quebram os dentes de vocês? — Larissa, que era Carioca e nunca tinha visto aquele tipo de farinha, ficou curiosa.
— Não mesmo. É a melhor coisa que tem — respondi, tirando um pouco da farinha do forno e colocando na boca.
— Farinha é um alimento muito típico da região norte, já que por essas bandas, dos ribeirinhos, nem sempre tem arroz, feijão e serve de complemento — Jamile disse a Larissa.
— E qual é o valor nutricional desse alimento? — Larissa perguntou mais.
— Nenhum. — Tiago, ao me lado, riu.
Todos nós caímos na risada e continuamos ali participando daquele momento e conversando com alguns outros moradores quando duas meninas chegaram até o lugar em que estávamos e para minha surpresa uma delas estava grávida. Grávida. Eu olhei a fisionomia e não parecia ser uma adulta, mas adolescente mesmo. Cheguei para Tereza, que estava mais ao meu lado e indaguei baixo:
— Que idade tem essa menina?
Ela me olhou e depois desviou para a garota morena de cabelos longos, que descansava as mãos nas costas por causa da barriga avantajada.
— Tem 13 anos — disse com certa tristeza.
— Onde ela estava que não a vimos até hoje? — perguntei.
— Estava na cidade para fazer exames. E com a dificuldade da seca demorou ainda mais para voltar. — explicou a situação.
— E quem é o pai dessa criança? — Minha voz estava se alterando.
Como uma situação daquela poderia permanecer assim? Tereza parou o serviço de amassar a mandioca e me fitou.
— Não sabemos. Ela não conta a ninguém. Os pais e as amigas já tentaram fazê-la falar, mas ninguém conseguiu — respondeu e meu coração se afligiu mais ainda.
Fechei meu olhos naquela hora e respirei fundo. Por Deus! Aquela menina podia estar sendo abusada e ameaçada. E era assim, ninguém faria nada? Se a menina não quisesse falar seria deixada por isso mesmo? Não, não podia ser possível.
— Como podem permitir que essa situação permaneça assim? Que passividade é essa? — Estava agitada quando lancei a pergunta, que era mais um tem de ofensa.
— As coisas não são assim, Lia. Há um tempo para tudo, não é? — Tereza com sua simples sabedoria declarou.
Aquilo não fazia sentido para mim. As situações se mostravam a cada dia pior. E eu sempre devia esperar, ter paciência, ter compreensão. Até onde nossa "tolerância" deveria ir a ponto de uma menina daquela ser engravidada e talvez até morresse no parto. Mas pelo menos tínhamos sido complacentes.
Aquela viagem estava a sendo a mais difícil de todas as minhas missões. As coisas não andavam, meu coração se encontrava partido e o mal se desenrolava diante de mim e eu não podia fazer nada. E isso era o que mais me abatia.
Em meio aquela minha guerra interna, vimos outras meninas mais velhas se aproximarem. Elas eram um trio e bonitas. Duas delas tinham a pele morena e cabelos longos, lisos e preto. A outra possuía uma pele mais dourada e de cabelo cacheado, com os olhos meio claros, e me lembrava com exatidão ser ela aquela que brigava com o homem por dinheiro. Ela chegou perto de um dos moradores, o abraçou e o chamou de pai. O velho senhor a tratava com amor.
"Será que ele sabia o que a filha dele fazia?" Pensei.
Mas balancei a cabeça porque era certo que sim. Numa comunidade daquela nada ficava escondido. Era realmente uma pena ser uma jovem entregue aquela vida. Ela se achegou a menina grávida e começou a tirar graça com ela.
— Saberemos logo se o pai desse bebê é filho de estrangeiro — A de cabelo cacheado brincou.
— Para com isso, Vivian! — A adolescente grávida declarou e eu descobri o nome da moça da vida.
— Mas, por quê? Estou falando sobre algo que é bom. Vai ser muito interessante ver um menino loiro por aqui — pronunciou e percebi como a menina ficou mais chateada. — Você que tem que parar de ser tão chata, Lauana. — E deu um empurrãozinho nos ombros da menina.
— Ei, não faz isso! — Não consegui ficar no meu lugar e a Vivian me olhou de cima abaixo. — Não está vendo como isso a deixa chateada.
Os outros missionários ficaram atentos àquela situação.
— E quem é você para achar que pode falar alguma coisa para mim? — Vivian ergueu o queixo e andou em minha direção. — Tu me conhece por acaso?
Eu olhei firme para ela. Essa menina devia estar ciente de que não me colocaria medo.
— Não conheço, mas sei reconhecer quando alguém fica infeliz por sofrer com brincadeira de mal gosto. — Cruzei os braços. — E eu simplesmente não deixo passar isso em branco.
— Tu é muito ousada, não acha? — Ela chegou mais perto e as amigas também, e do meu lado se uniram os missionários.
— Para com isso, Vivian. Volta para casa! — o pai dela tentou intervir, mas aquela menina não tinha cara de quem obedecia pai e mãe.
— Olha só, larga essa mulher e vamos para o que interessa — uma das morenas com ela disse e apontou para algo atrás de mim.
Quando me virei notei ser os militares chegando com alguns homens da comunidade. Eles tinham redes de pesca e outras coisas mais. Parecia que os ribeirinhos tinham tido uma orientação por parte dos homens do exército brasileiro.
— Veja o seu queridinho ali — a amiga disse com diversão para Vivian, que deu um sorriso malicioso.
Para meu total desprazer o preferido dela era Artur, que apareceu logo atrás dos demais. Ele conversava com um morador e gesticulava como se estivesse explicando algo. Fitei a Vivian outra vez e ela o olhava como se quisesse devorá-lo, notei como as amigas dela estavam também olhando para um dos nossos rapazes.
— Essa nossa comunidade nunca esteve tão recheada — a garota fitou Tiago e Nicolas, atrás de mim, cum um sorrisinho.
"Que loucura era aquela?"
Meu coração acelerou e percebi como a tristeza se apoderou de mim quando as meninas acabaram gritando para os militares e Artur acabou olhando na direção das vozes, e seu olhar se encontrou com o meu. Nós nos concentramos um no outro por um tempo, mas aquilo piorou minha situação. Eu precisava sair dali. Mas antes que pudesse ir embora, notei como Vivian transitava seu olhar de mim para Artur, teria ela percebido algo? Não ficaria para descobrir.
Me afastei de todos e caminhei até cansar por uma trilha para mais perto das árvores, inclinei meu corpo para frente e apoiei as mãos no joelho inspirando e expirando.
— O que está acontecendo comigo, meu Deus? Eu não sou uma pessoa sensível assim! — Olhei para cima e fitei o céu azul para além daquelas árvores. — Não quero esse sofrimento, Deus. Por favor, me faz ser a Lia forte como era no passado. Eu não quero gostar de alguém. Não quero!
Respirei fundo. Essa missão não estava sendo como eu havia planejado. Claro que as outras não seguiam fielmente os planos traçados, mas essa ia além. Meninas tão afrontosas, adolescente grávida, todo tipo de doença e para piorar um sentimento intruso. Eu precisava retornar ao leme daquela embarcação. Precisava!
🪵
Na mídia acima, a casa onde se faz farinha de mandioca dos ribeirinhos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Uma Porta de Esperança
Spiritual"Portanto, que o Deus da ESPERANÇA vos abençoe plenamente com toda a alegria e paz, à medida da vossa fé nele, para que transbordeis de ESPERANÇA, pelo poder do Espírito Santo". Romanos 15:13. No ano de 2002 uma seca assolou as comunidades ribeirin...