Capítulo 16

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O sono era uma dádiva dada por Deus. Descobri isso da maneira mais difícil. Mas como era bom num momento de dor tão aguda poder ser levada para algum lugar fora da realidade. Os sonhos estavam lá esperando por nós.

E dois dias depois, apesar do meu trauma, me senti um tanto mais calma, pois sabia que minhas indagações não seriam respondidas tão cedo. E o meu sono parecia ser embalado por uma música que tocava o profundo da minha alma. Era tocada por um instrumento de sopro e seu som estava um tanto distante, mas eu desejava ir para mais perto e poder escutá-la em toda sua primazia.

— Eu quero ouvir mais. — Me remexi em cima da cama. A música parecia me descrever de tão sincera que era.

— Lia, acordou?

— Nicolas, me leva até essa música. Por favor! — Entendi como não estava nos meus sonhos. Era realmente alguém tocando.

— É melhor ficar deitada. — Ele tentou me convencer.

— Não ficarei. Não posso perder de ouvir isso. Ela está me chamando! — Me ergui daquela cama, ainda que com dificuldade, apalpei as beiradas para ficar de pé. — Se você não me levar, vou procurar um jeito de ir sozinha.

— Você é cabeça dura demais, Lia! — Nicolas segurou meu braço. — Vamos, eu a levo.

Antes de partir, fiz uma breve higiene matinal e seguimos. Ele me guiou para fora daquele lugar e eu senti meu coração pulsar mais forte quando experimentei outra vez o roçar do vento da manhã na minha pele, o cheiro da mata e o som dos pássaros se encontrava mais nítido ao poder me concentrar só neles, pela falta da visão.

Fomos andando por uma trilha e a música foi ficando mais clara e alta. Ela era perfeita na sua composição. Tocava no fundo da alma. E eu não conseguia distinguir qual era o instrumento que fazia aquele belo ressoar. Após um tempo andando,  Nicolas disse:

— Eu não acredito!

— O quê? Que aconteceu? — Virei a cabeça de um lado para o outro como se isso fosse resolver alguma coisa.

— Nada. Na verdade, é algo bom.

— Lia, Nicolas, o que fazem aqui? — Era a voz de Artur.

— É você que estava tocando? — perguntei incrédula. — Não sabia que você tocava. — Me sentia perplexa. Artur era uma caixa de surpresa.

— Eu... Eu toco. É uma forma de aliviar a tensão — ele explicou. — O que fazem aqui?

— A Lia acordou ouvindo e disse que precisava escutar mais próximo — Nicolas respondeu e eu ainda estava me recuperando da surpresa.

— É uma das composições mais lindas que já ouvi — disse um pouco emocionada. — Era como se expressasse exatamente meu estado de alma.

— Compreendo. Foi isso que senti quando a ouvi pela primeira vez — Artur falou.

— Poderia tocar novamente? — Pedi com um tom de súplica.

Senti as mãos firmes dele tocarem as minhas e me conduzir para um tronco de árvore. Ele me sentou com cuidado e disse:

— Pode ir, Nicolas, eu cuido dela.

Ouvi passos se afastando.

— Que instrumento é esse? É um som maravilhoso que eu nunca tinha escutado. — Eu dei um sorriso. — Admito que eu nunca parei a fim de ouvir uma música.

— Dá pra perceber o quanto é uma mulher agitada.— Artur deu risada, eu ouvi. — E o instrumento é um oboé. Esse aqui é de madeira. Ele tem a aparência de uma flauta, mas tem uma palheta na ponta.

Artur colocou minha mão sobre o instrumento e era fino e comprido. Toquei os orifício, o lugar de fazer as notas e a palheta que era por onde soprava e fazia o som ressoar.

— Oboé é um instrumento melódico — ele me disse.

— E como aprendeu a tocar?

— Meu pai era do exército também. Ele tocava na banda. Quando criança foi querer me ensinar a tocar flauta transversal, que era o instrumento que tocava, mas eu não queria — ele me contava calmamente, e admitia estar gostando de o conhecer um pouco mais. — Então, quando adolescente assisti um filme chamado "A missão" e essa música era a trilha sonora. Eu fiquei tão impactado por essa composição que decidi aprender esse instrumento só para tocá-la.

Ele começou a tocar as primeiras notas. Era maravilhoso. A linha melódica do solo do oboé exprimia com exatidão sentimentos suaves de angústia, expectativa e esperança de dias melhores. Eu chorei. Me prostrei perante aquela composição.

Artur tocava com tanto apreço e sinceridade a música que era impossível não tocar em tudo dentro de mim. Senti o consolo de Deus naquele momento. Apesar da falta de visão, ele pareceu providenciar um meio de graça. E era de onde eu menos imaginava. A música se encerrou e um silêncio pairou sobre nós.

— Obrigada, Artur, por isso — declarei após um tempo.

— É bom ser útil a quem precisa. — Senti sua mão envolver a minha que descansava ao lado, no tronco.

Aquele toque me fez chorar.

— Você é bom, Artur. Depois das palavras que eu disse para você, ainda me trata com tanta gentileza.— Baixei a cabeça.

A bondade demonstrada por ele em meio ao meu sofrimento me fez ter vergonha do quanto havia sido insensível com ele quando me falou de sua maior dor.

— Você poderia agora abrir a boca e dizer que se eu estou amargurada com Deus por causa da minha falta de visão é porque Ele não é o melhor para mim.

Nunca havia experimentado uma dor tão profunda quanto aquela. Perder algo tão importante. E eu não sabia dizer o porquê o Senhor permitiu um mal terrível me abater.

— Nunca falaria algo assim para você, Lia. Entendo que quando estamos diante de situações que não conhecemos podemos agir errado — ele falou com amorosidade.

— Então, por que se afastou? — indaguei a ele.

— Estava poupando você de pecar e a mim também. Não tinha porque colocá-la diante de uma situação que cabia. — Artur tirou sua mão da minha.

— Não, a errada foi eu. Você tinha visto em mim uma amiga e fui a mais insensível possível. Me perdoe — expressei com sinceridade.

— Apesar de esquentadinha, você não é de toda orgulhosa. Isso é bom! — Ouvi o som de sua breve risada. — E ainda a vejo como uma amiga.

— É a graça de Deus. Então, quer dizer que podemos recomeçar? — perguntei com certa satisfação.

— Como diz a bíblia: a cada manhã as misericórdias se renovam. E os recomeços também. — Para minha surpresa e alegria, senti seus braços me envolverem de lado.

Aquela foi das melhores sensações que experimentei. Eu gostava daquele homem. Sinceramente, não podia mais negar aquilo.

— Obrigada por estar comigo nesse momento tão difícil, Artur. Principalmente, você que sabe o que é realmente perder algo tão precioso. — Eu me encostei ainda mais no peito dele.

— As dores nos transformam de uma forma que nem um outro jeito poderia! — ele disse.

Permanecemos ali e eu me lembrei de quando Elizabeth Elliot falou que o sofrimento era o grito de Deus para nossos ouvidos surdos. Que Ele me ajudasse a escutar sua voz!

🪵

Na mídia acima, a música que Artur toca no oboé, do filme "A missão". Ela tem muito significado. Espero que gostem!

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