Capítulo 1

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LIA RODRIGUES:

Fevereiro de 2002

Ao meu horizonte o céu se unia a terra como dois românticos apaixonados e o caminho para os alcançar era formado por aquele rio de cor barrenta sendo rasgado ao meio pelo nosso barco e a suntuosa mata fechada dos dois lados. Durante a noite, naqueles dias lentos e cansativos de viagens, ouvíamos tudo quanto era som, às vezes podíamos sentir que uma furiosa briga acontecia no reino animal. Eu respirei fundo e fechei olhos procurando calmaria através do ar fresco da natureza, mas isso não funcionou. Eu me sentia estressada por estar dentro daquele barco por tantos dias, essa era verdade. Podia-se afirmar que minha paciência já se encontrava no último estoque.

Larguei aquela meditação infrutífera e andei até o refeitório do nosso transporte fluvial encontrando os jovens, que compunham nossa missão, sentados sobre a mesa jogando algo. Suspirei. Eu era responsável por todos eles junto com Nicolas, meu companheiro de viagens missionárias por alguns anos, sinceramente, foram tantas aventuras que perdi as contas, mas ele saberia responder, afinal, sua memória era melhor.

— Conseguiu aliviar sua tensão? — Nicolas ao me ver afastou-se dos jovens e se achegou com um sorriso no canto do rosto.

— Se por aliviar tensão você quer dizer se manter numa inutilidade por mais de 10 minutos? Então sim. — Dei um sorriso seco para ele.

— Ora, se você permanecer com essa atitude suas marcas de expressão vão aumentar e vai parecer uma idosa antes dos 35 anos. — Ele tocou na minha testa para esticar minha pele e levou um tapinha por conta de sua brincadeira. — Como você é agressiva, mulher! — Riu em seguida.

— Nicolas, por Deus! Eu não suporto mais tantos dias de viagem, me sinto inútil e isso faz parecer que nossa vida é inválida. — Apontei para os jovens jogando. — Esse povo podia está fazendo algo melhor, não?

Nicolas virou-se para eles e franziu o cenho.

— Acredito que os cristãos podem ter momento de prazer. Isso não é errado. — Ele tornou a mim e pareceu estudar meu rosto, falando em seguida. — Lia, nosso ‘sucesso’ vem de Cristo não das nossas forças. Nunca se esqueça disso.

— Eu sei, eu sei. — Passei as mãos pelo meu cabelo. — Mas as coisas não vão acontecer se permanecermos parados, precisamos nos mover! — Abri os braços e os sacudi.

— E vamos nos mover para onde? — Nicolas cruzou os braços e olhou para o lado. — Acha que se jogar do barco é uma opção válida para nos tornar mais úteis ao reino? Pode ser que sim, é algo a se pensar. — Aquele tom divertido de Nicolas me fez revirar os olhos, ele sabia do que eu estava falando.

— O que eu fiz para merecer isso, Senhor? — Coloquei o indicador no meio da testa e balancei a cabeça, só ouvi a risada ao meu lado. Ele tinha um prazer em me tirar do sério. — Eu vou subir — avisei, afastando-me para que não cometesse o pecado de jogá-lo do barco. Apesar que, diante de toda aquela tensão, não seria ruim ver Nicolas tentando sobreviver ao rio.

— Não se preocupe, Lia, seremos úteis! — Ele falou mais alto, enquanto eu subia as escadas.

Chegando à parte de cima do barco, lugar onde ficava nossas redes, as cabines com beliches ao lado direito e os banheiros ao lado esquerdo e mais a frente uma espécie de varanda com bancos para sentarmos e apreciarmos a vista, aquela que já não me causava mais fascinação, mas uma profunda agonia, porém, lá eu acabei encontrando Felipe, um jovem de 19 anos, que fazia sua primeira viagem missionária. Ele achava-se sentado com um caderno com folhas brancas e uma lapiseira. Acomodei-me numa das cadeiras dispostas e perguntei:

— Essa viagem pode não estar sendo tão empolgante, não é? — Olhei para sua expressão estoica.

— Na verdade, tem sido bem proveitosa — ele declarou com certa reserva. — Mas admito que não imaginei a comunidade ser tão distante assim.

— Nem eu. — Sorri para ele e inclinei-me para frente para abelhudar aquele caderno. — O que você está fazendo?

— Eu gosto de desenhar. — Ele deu de ombros. — Me ajuda a sair mais dos meus pensamentos.

— Sua mente não descansa?

Felipe balançou a cabeça e abaixou os olhos, percebi que aquela pergunta talvez tivesse mais significado do que eu imaginei, respeitando seu espaço decidi segui para minha rede. Deitei com os braços atrás da cabeça e passei a me embalar pensando quais aventuras eu encontraria na comunidade de Potira, bem nas entranhas da floresta amazônica.

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Depois de mais uma noite no barco e quase meus ânimos enlouquecendo, a bendita comunidade foi avistada. Todos nós se colocamos na varado do barco para olhar o local a qual devíamos anunciar o evangelho do bendito Deus.

Logo, comecei a dar ordens aos jovens para que organizassem suas coisas. Eles começaram a retirar suas redes e guardar nas malas, organizaram sumiu utensílios. Eu e Nicolas fomos ver as caixas que trouxemos para a ajuda de alguns necessitados. Tínhamos muito serviço para fazer, mas nenhum deles seria tão complicado quanto àquele que ouvimos seu José, o piloto do barco, nos dizer:

— Não poderemos nos aproximar da comunidade por causa da seca. Vocês terão que descer e andar.

Minha boca se abriu ao escutar aquela notícia.

— Andaremos mais ou menos quanto? — Nicolas perguntou.

— Um quilômetro e meio por aí.

Fechou meus olhos e pedi graça.

— Tem vezes que Deus traz a chuva e enche o rio e assim o barco pode parar perto — Seu José declarou inocente.

— E tem vez que ele faz a gente andar na lama — Nicolas complementou.

Uma hora depois de termos sidos avisados de nossa caminhada, ajustamos tudo e começamos a descer do barco. A água cobria um pouco mais de calcanhar, estava rasa e morna em decorrência do sol. Os meninos tinham as caixas sobre os ombros, as meninas com mochilas e tudo mais. Contudo, nosso percurso não seria tão fácil, pois a lama começou a prender em nossos pés e isso pesava mais a andança e não tínhamos chegado nem no meio.

— Oh, Senhor! Tu testa nosso amor por ti de muitas maneiras!

A lama ia pesando e algumas das meninas começavam a reclamar do cansaço e fome. E eu nem poderia julgá-las, pois estava na mesma situação. Um passo de cada vez. Esse era o meu lema. Mas, de repente, tudo mudou quando uma pedra apareceu na minha frente e eu desequilibrei.

— Lia, não! —  Nicolas gritou, mas já era tarde de mais. Eu caí de cara naquela água barrenta e lamancenta, deixando a bolsa que carregava cair e molhar tudo que tinha dentro dela.

Cuspi a lama que havia entrado em minha boca e disse aos céus: "Não quero nem perguntar o que sucederá daqui pra frente, meu Deus!"

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Espero que gostem da "nova versão" e prometo dessa vez não retirar tão cedo.

Uma Porta de EsperançaOnde histórias criam vida. Descubra agora