1. Vilarejo da Caça

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Assim que o sol nasceu, já estava vestida e pronta para me juntar aos meus amigos na trilha do bosque congelado. Aqueles primeiros momentos de sol, quando os animais, herbívoros e carnívoros, estavam saindo de seus abrigos da noite anterior, era o melhor horário para se caçar. Ali, tão longe da Capital, onde os veículos de suprimentos chegavam com raridade, a caça diária era quase a nossa única fonte de alimento o ano inteiro.

Desde que essa Era do Gelo começou, o planeta em que a humanidade surgiu já não era mais o mesmo. Tudo havia mudado quando a neve tomou conta das cidades. Nada mais havia restado além de florestas de coníferas, campos de tundra, os animais resistentes às temperaturas baixas que agora cobriam quase todo o planeta e as ruínas do que um dia foram os prédios de uma grande cidade. Poucas pessoas haviam sobrevivido às mudanças climáticas, e nós, descendentes desses seres humanos, lutávamos para viver nos pequenos vilarejos congelados construídos sobre a neve que cobria o mundo. Cada dia era uma batalha por sobrevivência nos cantos mais remotos do Reino, principalmente para aqueles que não tinham tanta resistência às temperaturas abaixo de zero. Já que a economia da eletricidade que chegava até nós ficava reservada aos poucos dias festivos que tínhamos, a expectativa de vida em vilas como a minha diminuía, afinal, os muitos jovens e os velhos eram sempre os primeiros a morrer. Os primeiros anos de vida eram um teste da natureza, algo de que não podíamos mais fugir, testando quais humanos eram fortes o bastante para continuar vivendo. Pela primeira vez em milênios, a humanidade voltava a se submeter às leis da seleção natural. Mesmo assim, alguns jovens saudáveis e já adaptados ao frio como eu, aprendiam a caçar no momento em que passassem com saúde da fase mais crítica da infância. Pessoas como eu e meus amigos, os caçadores, éramos responsáveis por alimentar toda a cidade, vendendo as presas para o único açougueiro que tínhamos. A exclusividade com ele rendia aos caçadores uma porção de carne de boa qualidade todas as semanas e sem pagar nada, e o fato de ter alimento garantido me fazia esquecer o fato de que algumas famílias nem sempre tinham como pagar aquele homem. De qualquer forma, eu não era nenhum tipo de político, não era minha responsabilidade cuidar de todo mundo.

Apenas a Capital, lar da família real deste reino, vivia em abundância, onde a tecnologia e a ciência ainda prosperavam, graças aos investimentos concentrados ali. Muitos eram os jovens que sonhavam em chegar à Capital, mas eram poucos os que conseguiam, e estes, jamais voltavam a dar notícias.

Eu mesma gostaria de ir embora do lugar onde nasci, não nego. Nunca havia visto um jardim sequer, não havia vivido um único dia em que tudo que minha visão alcançava não fossem ruínas aparecendo do chão coberto de camadas intermináveis de gelo. Estava cansada de ver tudo em branco e preto, cortados pelo vermelho de uma fogueira do lado de fora de alguma casa, mas ir embora era um privilégio muito restrito.

Ainda não havia conhecido outra vida além da cidade de cabanas e os túneis subterrâneos que impediam as pessoas de congelar no pior do inverno, e, no entanto, eu seguia lutando pela vida que eu sonhava ter um dia longe daquele lugar. 

Ao caminhar pelo centro da cidade em minha rota até a floresta de coníferas, toco mais uma vez na ponta da tocha de metal de uma estátua muito antiga, hoje já quase escondida sob tantos metros de gelo abaixo de nossos pés. Aquela estátua era a única coisa que tinha testado de uma grande cidade que um dia havia existido antes da construção da minha vila. As ruínas de prédios altos hoje se escondiam em neblina e vento no horizonte, e mal dava para ver suas sombras em dias mais escuros.

Naquela manhã em específico, a trilha construída no meio da floresta reunia mais caçadores do que de costume. Uma festa para receber a realeza na cidade nos motivara a conseguir mais carne para o banquete da Prefeitura durante a noite. O Príncipe Herdeiro logo receberia a Coroa de seu pai já velho demais para reinar, e segundo a tradição, o jovem visitava cada cidade e vila pertencente ao seu reino para apresentar-se para seus futuros súditos. Eu achava uma bobagem, mas eram as regras do atual modelo de governo. O Rei havia feito isso décadas antes, assim como seus antecessores, e com certeza os filhos do Príncipe um dia fariam o mesmo. Não era algo que eu deveria me preocupar em ver de novo pelo menos nos próximos 30 ou 40 anos, se sobrevivesse até lá, é claro.

A Guardiã da NeveOnde histórias criam vida. Descubra agora