Mal o sol havia aparecido no céu e já estávamos a caminho do aeroporto da Capital. As turbinas ligadas do avião que nos aguardava criavam uma ventania quando saímos do ambiente fechado do aeroporto, e eu fui obrigada a prender meu cabelo em um coque para evitar que os fios escuros cobrissem minha visão.
Uma escada surge da porta recém aberta do avião, e uma aeromoça nos recebe com um largo sorriso quando subimos até a cabine. Avião era mais uma coisa que eu nunca tinha entrado, mas a Comitiva que nos acompanhava me garantiu que um meio de transporte desses era completamente seguro. No passado, aviões assim podiam ter falhas mecânicas e cair, mas às vezes a culpa era do próprio piloto. Hoje, as coisas haviam mudado, qualquer sinal de problemas e o piloto automático do avião assumiria, e as pessoa aterrissariam em segurança graças às cápsulas de fuga que agora eram acopladas à parte de baixo do avião. Não havia o que temer, o Príncipe dissera. Ainda não entendia como algo que pesava toneladas podia levantar voo, mas iria confiar, já que não tinha outra escolha.
Durante quase um dia inteiro, voamos para o polo sul no avião particular da Coroa. Mal percebi o tempo passar sentada no sofá macio, me alimentando muito bem e recebendo todo tipo de mordomia dos funcionários que ligaram a televisão para mim e me entregaram até mesmo um cobertor quando todos os outros também já tinham ido dormir ao pôr do sol, as janelas finalmente fechadas quando não havia nada para ver além de escuridão. Diferente de um avião comercial, com seu interior ocupado apenas por centenas de cadeiras, esse era mais confortável, e era como estar em um daqueles trailers de filmes antigos, uma casa móvel. Tinha uma pequena cozinha, banheiro, bar e até algumas camas presas à parede. Estar naquele avião não era a experiência horrível que eu havia imaginado, mas eu sabia que as coisas iriam mudar quando chegássemos ao DPCRU, o Departamento de Pesquisas Científicas do Reino Unificado.
Por conta do fuso horário, o sol já iluminava o gelo na Área de Pesquisa Internacional da Antártica quando enfim pousamos, horas incontáveis de viagem depois. Uma jovem de cabelos vermelhos vestida com um grosso casacão de pele e tecido impermeável nos esperava acompanhada de um homem moreno ao seu lado. Os dois nos receberam com cumprimentos e sorrisos aliviados quando descemos aquela mesma rampa na lateral do avião, e nos agradeceram pela rapidez de resposta quando começaram a nos guiar pela neve, embora uma camada de fuligem negra cobrisse boa parte do chão congelado sobre o qual pisávamos. Eram eles os sobreviventes, então? O que havia acontecido para que as cinzas chegassem tão longe, se mal dava para ver o que restava da construção no horizonte?
Eu caminhava visivelmente com muito mais firmeza naquele solo coberto de gelo do que qualquer um daquela Comitiva, e me apressei para alcançar Stefan, que insistia em tentar acompanhar de perto os dois cientistas, embora estivesse se cansando com seus pés afundando na neve e fuligem. Depois do que vi na Capital, não me surpreendia que alguém como ele andasse como se estivesse pisando em ovos por aqui. Eu havia crescido em um mundo congelado e abaixo de zero como esse, nem mesmo o frio me incomodava, mas eu notei imediatamente como o corpo do Príncipe tremia mesmo sob tantas camadas de roupa. Apenas eu e os dois cientistas parecíamos minimamente confortáveis ali, e eu soube imediatamente que aqueles dois estavam muito à vontade para estarem na neve há apenas seis meses. Aquele nível de normalidade para conversar e caminhar como se estivessem em um parque da Capital quando estavam em um lugar inóspito como a Antártida só podia significar que eles também passaram bons anos de sua vida no mesmo mundo afetado pela Era do Gelo que eu conheci. Seriam eles exemplos de jovens que fugiram de suas casas em vilarejos construídos sobre ruínas em busca de uma vida melhor? Será que o motivo pelo qual eles nunca deram notícias é porque foram mandados para lugares como esse?
Os escombros da Base de Pesquisas começavam quase um quilômetro antes da construção em si, e conforme nos aproximamos mais do que sobrou do lugar, os pedaços de tijolos e metal ficavam cada vez mais frequentes, e eu sabia que aquilo significava que uma explosão havia atingido o local. Tive que desviar de imensas barras de ferro e pedaços enegrecidos do que pareciam móveis e até algo parecido demais com um osso humano quando os dois sobreviventes nos levaram até o galpão aquecido perto da Base, a única coisa que permanecia de pé por ali. Lá dentro, veículos de neve e utensílios de todos os tipos ocupavam boa parte do espaço, e a julgar pelos pratos e copos sobre uma mesa no fundo do galpão, eu imaginava que era ali que os dois estavam vivendo enquanto a ajuda não chegava.
— Eu sinto muito por ter de trazê-los aqui.- A mulher disse ao indicar algumas cadeiras em volta de uma mesa no único espaço que não era ocupado por máquinas dentro daquele galpão.- Ficar aqui era a escolha mais segura para nós, mas infelizmente não era a mais confortável.
— Precisamos avaliar os danos.- Um dos soldados que nos acompanhava na Comitiva lembrou.- Importa-se se dermos uma olhada por conta própria?
— Fiquem à vontade.- A mulher ruiva respondeu.- Caso queiram algo para beber na volta, logo farei um café com o que nos resta do depósito.
O soldado bateu continência e seguiu o resto da equipe para fora do galpão, e mal a porta havia se fechado, a voz dando ordens se perdeu no frio da Antártida implacável lá fora. Stefan e eu permanecemos na segurança do depósito com os dois sobreviventes, que nos ofereceram água e comida antes de se juntarem à nós na pequena mesa de metal, dispostos a responder qualquer pergunta nossa.
— Então, a primeira coisa que preciso saber é o que exatamente aconteceu aqui.- Stefan tira as perguntas da minha cabeça, só pode.- Notei que os escombros parecem ter vindo de uma explosão, mas quero saber o que a provocou.
— Eu até podia explicar.- Disse a ruiva.- Mas é melhor mostrar.
A mulher, que devia estar no final de seus vinte anos, olhou rapidamente para o seu companheiro, talvez com cerca de 35 anos, e pediu que o homem se levantasse para buscar "aquilo", seja lá o que isso significasse. Ele pegou da mesa ao lado de um armário de metal algum tipo de disco prateado que logo separou em dois, entregando um para a mulher e deixou o outro sobre a mesa bem na nossa frente. Fiquei alerta quando vi a mulher prendendo aquilo em sua têmpora, sem saber o que era, mas Stefan parecia calmo, e soube que não era algo a se preocupar, embora não soubesse do que se tratava todo aquele teatro. Porque aquilo me parecia dramático demais.
— O que Alyssa está usando é um Captador de Memórias.- O homem me explicou quando os olhos dela se fecharam em concentração, um dos dedos pressionando o disco sobre sua testa. Minha surpresa devia estar estampada em meu rosto, já que não disse a eles em nenhum momento que não havia crescido na Capital. Ou talvez eles também soubessem como era chegar em um mundo completamente novo, sem saber o que esperar ou o que pode encontrar.- Te permite vivenciar as lembranças de outras pessoas sob o ponto de vista dela.
— E é totalmente seguro.- Completou Stefan.
Nem um minuto havia se passado quando a mulher tirou o disco da sua pele e o limpou com um pano que vinha dentro da caixinha onde os discos eram guardados. Em silêncio, ela juntou os dois como estavam antes, e imediatamente os discos iluminaram-se com luz branca.
— Um para cada.- Alyssa informou.- Vocês vão ver tudo que eu vi há dois dias.
Aceitei um dos dispositivos que a mulher estendia, e imitando o que Stefan fazia, encostei o disco iluminado sob a minha orelha, bem na área dura perto do crânio que se juntava com o pescoço. Fechei os olhos e o mundo ao meu redor se apagou, substituído por imagens distantes como se um filme se passasse em minha cabeça.
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A Guardiã da Neve
Science FictionEm um futuro distante, uma nova Era do Gelo começou. Neste mundo congelado, os humanos sobreviventes precisaram mudar todo seu estilo de vida. Com menos água líquida disponível e novas porções de terra reveladas, novos países e colônias surgiram. Re...