Prólogo

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Acredito que todos os seres humanos já experimentaram a sensação da descoberta, o prazer de abrir uma porta outrora fechada em seu mundo particular, que traz à tona algo novo, obrigando a consciência a jamais retrair-se ao estado anterior e manter-se em incrível expansão.

Porém, nada se compara ao primeiro vislumbre que tive adentrando este ambiente, melancólico e escuro, em sua essência vazio e solitário, mas igualmente misterioso e revelador.

— Eu não chamaria um cárcere úmido e sujo de misterioso e revelador — Disse o homem comprido e magro, com vestes negras que batizei de Virgílio.

Agachado num dos cantos do pequeno cômodo, com o rosto entre as pernas, permitindo que apenas sua velha cartola preta ficasse à mostra, mantinha sua visão pessimista da existência.
Fora difícil no início se acostumar com a ideia de que meus pensamentos pudessem ser lidos por ele, e mesmo ainda não tendo visto seu rosto, passei a respeitar seu espaço e particularidades.

— Faz algum tempo que as dores de cabeça não aparecem, talvez seja pelo fato de seus pensamentos terem se tornado mais reflexivos ao invés dos confusos questionamentos que tinha algum período atrás — Comentou Virgílio, aparentando uma leve estabilidade em seu estado de espirito.

— Por que não me mostra seu rosto? — Perguntei, dando uma pausa em minhas reflexões.

— De que diferença isto faria? — Respondeu, se espremendo ainda mais contra a quina da parede — Eu sou o que sou no momento, e também já fui outros, jamais poderei ser um, o rosto é só uma fachada do salão de fantasias.

— Para mim você é um mágico com inúmeros truques brilhantes, e aqui nesta prisão meu único colega de cela.

— Eu não estou preso — Lembrou ele.

— Sim, eu sei. Me desculpe, mas um lugar fechado como este, com blocos grandes de concreto, este acabamento não finalizado, o teto alto com a iluminação amarelada e fraca, contendo uma única porta de metal grande e pesada com onze trancas externas e um viseira de vidro temperado e blindado, em meu conceito lembra as vezes uma prisão.

Dei uma leve risada de minha incoerência, que minutos atrás descrevia o lugar como revelador.

— Só está realmente preso quem enxerga com os olhos físicos, quando aprender a navegar pelo pai, jamais se encontrará em um único lugar.

— Acha que seria possível para mim? — Perguntei, eufórico e curioso.

— Talvez.

— Somente você pode fazer isto?

— Não.

— Quem mais?

— Todos meus irmãos em Epifania.

— Alguém como eu já conseguiu?

— Talvez.

— Você se lembra do nome?

— Acho que os chamavam de loucos.

— Que pena, eu não sou louco.

— E qual é seu nome? — Perguntou ele, pela primeira vez dirigindo uma pergunta pessoal a mim.

— Edgar — Respondi.

— Bom Edgar, sua presença neste lugar é um tanto incomum, no começo me incomodava ter outra mente no limbo, já que, aqui é a única localização em Epifania que me permite bloquear-se do pai. Mas eu também não entendo muito bem esse vínculo que construí com você mesmo sem conhecê-lo.

— Talvez possamos ajudar um ao outro, já que este lugar e a sua existência também são uma incógnita pra mim — Sugeri, tentando me aproximar dele.  

Com passos vagarosos, caminhei pelo local de não mais de três metros quadrados e ao ficar cerca de meio metro de Virgílio, agachei e pensei em tocá-lo.  

— Por favor, não me toque — Afirmou ele, mais uma vez lendo meu pensamento.  

— O que tanto lhe chateia? — Perguntei, tentando bloquear os demais pensamentos que tinha para que ele não julgasse qualquer ação minha.

— Não ter uma identidade única e própria — Mencionou.  

— Para mim, você parece bem único, até mesmo lhe dei um nome.

Percebo que de todas as outras personalidades que o vi exercer, essa sem dúvidas é a mais frágil e melancólica.

— Não gostou do nome que lhe dei? — Perguntei — Virgílio?  

— Por que escolheu este nome? — Indagou ele.

— Virgílio foi o guia de Dante pelo inferno na obra "A divina comédia" de Dante Alighieri, um homem sábio, espiritual e que me lembra você. Assim como ele, que deu as "boas vindas" a Dante assim que pisou no limbo, você estava aqui neste lugar desconhecido assim que cheguei.  

— Um guia é? — Perguntou Virgílio, deixando escapar uma leve risada, que soou estranhamente assustadora, como um deboche — Não estou debochando de você, é que as dores de cabeça estão voltando, bem fortes desta vez.

— Você está bem?

Ele agora inicia uma gargalhada, tremendo todo o corpo, ainda agachado com a cabeça entre as pernas, se balança como uma criança brincando.  

— Virgílio?

— Sim! Eu sou Virgílio, o guia! 

Levantando-se bruscamente, num único salto, como um palhaço numa peça de circo, uma borboleta rompendo o casulo, ele encontra-se de pé, me encarando pela primeira vez.

— Edgar! Sou Virgílio, o seu guia por este mundo. 

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora