Capítulo 02 - Eclipse

92 7 54
                                    

O som de abertura fora tão estridente e alto que senti dores de cabeça no mesmo instante, como se uma tranca a anos enferrujada e consumida pelo tempo fosse aberta com puxões violentos, arranhando a superfície e rasgando o ar com fuligens metálicas.

Depois de longos onze segundos, a sensação de atordoamento havia melhorado, e Virgílio parecia tão espantado quanto eu sobre o ocorrido.

— Você sabe o que foi isto? — Perguntei, ainda passando a mão na testa e me recuperando.

— Se disser que sei exatamente o que é, estaria mentindo para nós dois.

— O que significa esta porta? Digo, eu sei o que é uma porta, mas por que ela está aqui e o que são estes fechos? — Enquanto perguntava, fui me aproximando aos poucos da porta, que até o momento evitara instintivamente por sei lá qual motivo.

A curiosidade instigara a descobrir mais sobre aquele lugar, o limbo parecia apenas o quintal de um enorme castelo que seria Epifania. Mas a escassez de informação me obrigava a apenas especular sobre sua existência, e muitas vezes de minha própria.

— O motivo pelo qual o fecho se destravou ainda não sei lhe explicar, mas quem, sim — Disse Virgílio, fazendo uma expressão investigativa — Apenas o pai tem acesso e poder para controlar o portal que protege seus domínios.

— Virgílio? Seu pai... Ele é igual a você? — Perguntei.

— Em que sentido pergunta peregrino? Fisicamente, ele é bem diferente, mas algo dentro de nossa essência nos faz seres semelhantes, no mundo terreno, não é assim?

— Também somos diferentes na estrutura, mesmo que certos padrões possam ser vistos, mas não existe uma personalidade igual a outra — Falei, enquanto refletia sobre os seres humanos e suas irregularidades.

— Não há nada que os una de alguma maneira? — Virgílio fizera uma pergunta aparentemente inocente e casual, mas não entenderia a complexidade da resposta — Por que eu não entenderia?

Confesso que é difícil lidar com essa questão de consciência conjunta.

— Com o tempo você pega o jeito — Disse, mais uma vez lendo meus pensamentos.

— Talvez o mais próximo que tenhamos de algo que nos conecte, seja o amor — Respondi, mesmo na dúvida do que afirmar.

— O que é o amor? — Insistiu, me deixando cada vez mais incerto das convicções e entregue as reflexões.

— O amor pode ser representado de várias formas e através de diversos seres, do ser humano à um coelho, de um recém-nascido a um idoso, em grupos ou até mesmo individual, mas o mais comumente rotulado é o amor afetivo entre duas almas, uma dança eterna e conjunta que eleva a alma a um novo estágio.

— Você já amou peregrino? Parece falar com propriedade, como se tivera experimentado de um líquido divino e jamais pudera voltar a beber de outra fonte.

— Minha vida terrena ainda é um grande buraco negro, mas consigo lembrar de um nome...

Sim.

Um nome.

Ela se chamava...

Como era mesmo?

É claro!

Beatriz.

Beatriz, a mais potente luz que iluminou meu mundo.

— Ainda me recordo de tê-la amado, de sentir seu corpo quente sobre o meu, seus lábios macios, seu toque, tudo nela parecia perfeito demais para existir. Mas algo aconteceu e fez o castelo virar ruínas, e Beatriz tornou-se poeira ao vento.

Tomado pela avalanche taciturna que minhas lembranças revelavam em fragmentos, o motivo veio a fonte dos pensamentos, os momentos de tensão e ruptura que fizeram Beatriz correr como areia em minhas mãos.

Brigas.

Discussões calorosas.

Choro.

Infelicidade.

Meu sol foi tomado por um eclipse e escurecido até não sobrar um único feixe de luz.

Sou doente.

Pelo menos é isto que minha enevoada memória trouxe.

Busquei um canto dentre os quatro disponíveis naquela prisão.

Me agachei.

Depois encostei a cabeça na parede, escorregando-a até estar deitado no solo, onde desejei dormir para esquecer quem fui.

Esquecer Beatriz.

E tudo que causei a ela.

Queria poder chorar cada lágrima dela.

Adormeci.

Preto no limbo.

Os períodos de tempo se passaram.

E ali permaneceria.

Até ser interrompido por uma voz.

Que não era Virgílio.

Parecia uma mulher.

Beatriz?

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora