Capítulo XXXII - Dualidade

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— Mamãe? Você está aí? Eu não consigo dormir... — Tudo estava muito escuro no quarto, eu não conseguia enxergar um palmo a minha frente, tinha medo do que poderia aparecer.

Todas as noites eram iguais.

Depois do beijo na testa, as luzes eram apagadas e a porta fechada. Não importa o quanto eu dissesse que tinha medo, sempre desligavam. Minha mãe ficava comigo até pegar no sono, mas poucos minutos depois eu estava acordado de novo, olhando para o nada, sem ninguém.
O padre disse que quem teme o escuro são os filhos do demônio, quem anda com Deus está sempre protegido e iluminado.

E ele sempre finalizava o sermão dizendo meu nome é Lúcifer, o ser que todo mundo odeia e menospreza. Eu não gosto quanto me chamam desta maneira, eu me chamo Edgar, o senhor Lucien disse que posso ter o nome que quiser.

Fico bravo quando ele fala isso, muito bravo mesmo.

Quando reparei, estava torcendo o cobertor com ambas as mãos, tinha ódio do padre quando me chamava assim, não ligava para ficar de castigo, só não queria que me chamasse de demônio. Ficava pensando nisto e tinha dificuldades para dormir, fico triste em saber que existem outras crianças com nomes normais, não triste por elas terem nomes legais, mas por eu não poder ter o mesmo que o delas.

Eu não sou Lúcifer.

Aos poucos, depois de muitos minutos meus olhos foram se fechando, dei algumas piscadas.

Eu sou Lúcifer.

Tudo continuava escuro.

Eu não sou Lúcifer.

Acho que vou dormir.

Eu sou Lúcifer.

***

"Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança"

Era o que estava escrito em cima da imensa porta de pedra com esculturas de homens nus que pareciam estar com vergonha, todos tinham a cabeça abaixada. Estava fechada, mas dava para sentir um calor vindo de trás.

Eu me localizava num tipo de vale de rochas, estava muito escuro, muito escuro mesmo, mas dava para enxergar se forçasse a vista. Não tinha para onde ir, a porta estava fechada, e não vi nenhuma outra saída. Resolvi então caminhar um pouco para ver se encontrava alguma coisa ou alguém.

Estava frio ali, frio e escuro.

Me senti sozinho, queria minha mãe.

Tive vontade de chorar, mas minha mamãe disse que homem não deve chorar. Pensando nisto, segurei as lágrimas e continuei andando. Parecia que estava caminhando em círculos, por que depois de não sei quanto tempo, estava de volta na porta.

Resolvi bater para ver se alguém abria pra mim.

Nem mesmo barulho fez, minha mão doeu quando bati na pedra.

Sentei e esperei.

De algum lugar, talvez de cima, uma luz forte iluminou um canto do vale, revelando duas pessoas conversando, ficaram em destaque, igual quando liga uma lanterna em cima de alguém.

Não pareciam ser adultos, era uma menina do meu tamanho e um garoto maior, ela usava um vestidinho preto, usava um rabo de cavalo, sorridente, com as mãos para trás, chutava o ar. E ele de camisa e calça também pretas tinha um cabelo espetado e raspado dos lados, com pulseiras de caveira nos dois braços e um colar grande com um "L" no pescoço.

Conversavam, na verdade, pareciam estar discutindo. A menininha começou a chorar e ele a segurou pelo braço. Não sei se eram irmãos, mas eu tinha medo do menino alto.

Eles não pareciam me enxergar, acho que por que a luz estava só em cima deles, então fui ao encontro dos dois, talvez soubessem como sair daquele lugar, ou abrir a porta.

Quando me aproximei, percebi algo que não tinha visto antes.

A luz projetava a sombra dos dois no rochedo marrom atrás deles. Só que estas sombras não eram iguais ao dono.

Também conseguia agora escutar suas vozes.

— Todas as vezes você fica chateado quando te chamam de Lúcifer!! Este é seu nome idiota, por que não simplesmente aceita ao invés de ficar aí magoado — Dizia a garota, com os braços esticados, e a cabeça intimando o menino.

Sua sombra mostrava uma cauda longa e pequenos chifrinhos.

— Não fale assim irmãzinha, não se exalte, não tem problema, só estou te contando algo que me chateou por um tempo, um segredo entre irmãos, para levar contigo. Por que não me conta um seu? — O mais velho tinha uma sombra com asas bonitas e aquele círculo que anjos tem na cabeça.

— Não vou te contar nada, seu estúpido! Como deixa ficarem zombando de você? É um molenga mesmo, se fosse comigo, já teria afundado a cabeça deles na terra.

A garota com sombra estranha deu um tapa no irmão, que se curvou com uma rosa branca para entregar.

Acho que doeu, não gostei dela.

É bonita por fora, mas tem uma sombra feia.

— Ei — Falei, me aproximando, os dois viraram ao mesmo tempo e me olharam como se fosse um animal — Também me chamam de Lúcifer, eu não gosto do nome.

A pequena fez uma careta e colocou as mãos na cintura.

— Outro bunda mole. Pronto! Agora estou aqui com dois maricas reclamando e chorando por terem sido injustiçados e bla bla bla.

O mais alto se aproximou, segurou minha mão com as suas duas.

— Eu te entendo pequenino, não se sinta mal com isto, o que importa é o que você acha de si mesmo. Somos o que queremos ser.

Seu toque era quente, me senti acolhido, mas também entendia a raiva da irmã dele, conseguia compreender os dois.

— Vocês sabem sair daqui? — Perguntei.

— Sair? De onde você veio figura? Uma vez vindo para este lugar, não tem como voltar. Logo aquela porta vai abrir e um imenso cachorro de três cabeças virá devorar até o último osso do seu corpo, triturando seu coração com seus dentes afiados, e eu vou rir com os estalos.

— Não fale assim com ele irmã, vai assustar o menino. Fique com a gente e nada irá acontecer com você, está bem?

Estava com medo. Quase fiz pipi nas calças pensando neste monstro.

— Nada vai acontecer? Ele engole as bichinhas como vocês que têm este nome tosco. Se acha mesmo que nada vai acontecer, então melhor nem olhar para trás agora — Ela apontou o dedo para o portal.

Senti um bafo quente nas costas, uma respiração pesada, e a terra tremendo.

Estava vindo na minha direção.

— Pega ele Lúcifer!

Correndo.

Senti cheiro de carne estragada.

Se aproximando.

Vai me pegar...

***

— Mamãe!!! — Acordei num susto, suando e ofegante.

Ela entrou correndo no quarto e ascendeu a luz.

— O que foi querido? — Perguntou ela.

Comecei a chorar.

— Eu não quero ser chamado de Lúcifer.

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora