Virgílio já havia mudado de personalidade outras vezes, mas nenhuma delas com tamanha oscilação, no geral se resumia à momentos tristes, alguns melancólicos e poucos que posso chamar de sociáveis.
Não tenho informações sobre suas origens e muito menos de suas características, não que eu estivesse numa situação muito diferente quando pensava sobre mim mesmo. Ainda tenho dificuldades de lembrar todos os fragmentos que compõem minha vinda para este lugar. A única porta do pequeno cômodo era enorme e não me atrevi a tentar abri-la, toda minha atenção se concentrou em saber mais a respeito do homem taciturno que aqui encontrei.
E pela primeira vez ele se desprendeu de seu universo local e revelou seu rosto, a maquiagem branca e o nariz pontudo harmonizavam com as vestes negras, mais alto do que imaginei, consegui associar a um malabarista de circo desengonçado com tendências ocultistas.
Parado com os braços abertos, um sorriso descomunal e aterrorizantemente alegre, passara de um jovem depressivo a um bobo da corte gótico em pouquíssimo tempo, e tudo que consegui fazer é ficar parado olhando-o.
— Meu caro Edgar, permita-me introduzir esse humilde guia a vossa senhoria — Disse, fazendo uma reverencia muito habitual nos antigos reinos europeus — Sou Virgílio, um dos onze apócrifos, filho do pai supremo e habitante das terras conhecidas como Epifania, lugar restrito aos conscienciosos. Em que posso lhe ser útil?
Virgílio subliminarmente adotou a pura essência do personagem que eu havia imaginado, mesmo que essa não fosse a intenção, e foi como se não estivesse existido as versões anteriores.
— Também posso escutar seus pensamentos caro Edgar — Lembrou ele — E a forma como divaga sobre minha personalidade.
— Desculpe — Respondi, sem graça — Virgílio, o que é este lugar onde estamos? Ele faz parte de Epifania?
— Não! Estamos numa parte pré-epifania, conhecida como Limbo, este ambiente é uma espécie de sala de esperas e igualmente quarto divisor para que as mais avançadas mentes fora de Epifania não consigam adentrar as terras do pai.
— O que você faz por aqui?
— Em Epifania o pai conecta todas as mentes, é impossível existir sem ter a ciência dos demais, a todo momento escuto e sinto os pensamentos de meus irmãos ao mesmo tempo que transmito o meu próprio, o Limbo é o único lugar em que posso sentir a existência singular, longe do pai, aqui sou unitário e posso descansar com meus pensamentos. E às vezes tenho encontros interessantes com pessoas como você.
— Eu não fui o único a chegar aqui?
— Único? Claro que não. Já houveram diversos outros vindos do mundo terreno, porém, apenas um ser pôde cruzar a grande porta dos onze fechos dos distúrbios e adentrar em Epifania como alguém renascido pelo pai.
— E quem era ele? — Questionei, inteiramente intrigado com aquela pessoa.
— Não me recordo muito bem dele — Falou Virgílio, enquanto levava a mão ao queixo, mostrando-se pensativo e fazendo um tremendo esforço para resgatar suas memorias — Mas, lembro-me que ele me ensinou um jogo.
— Um jogo?
— Sim! Acho que se chamava xadrez! Sim, sim, é isso, xadrez, quer jogar? — Ele parecia eufórico.
— Mas não temos peças, e muito menos um tabuleiro, como iriamos...
— Para que precisamos de objetos, se podemos utilizar a nossa mente para isso, nunca utilizamos acessórios, todas nossas partidas foram simuladas com o que tem aqui dentro — Virgílio batia o dedo indicador em sua fronte.
— Mas como seria um jogo justo, se você pode prever meus movimentos lendo minha mente?
— Isso faz parte do jogo, ao mesmo tempo que entregaria sua partida ao pensar suas melhores jogadas, poderá me enganar imaginando estratégias falsas, que busquem confundir o adversário. Fazer o certo, pensar o errado, ou vice-versa, é um jogo divertido.
Mesmo não muito crente de uma possível vitória, aceitei a partida espacial de xadrez, que curiosamente parecia ainda mais instigante que o modelo tradicional.
O tempo é relativo neste lugar e não consegui mensurar o período que passei jogando com Virgílio, sequencias de derrotas não fizeram as partidas se tornarem entediantes, pelo contrário, a cada nova jogada, minha mente trabalhava diferente, por alguns breves instantes, pude fantasiar ler a mente e os movimentos de meu adversário, uma conexão que aparentava uma intimidade maior.
Minutos.
Horas.
Dias.
Talvez até semanas.
Como dizia Virgílio, passaram-se períodos de tempo incontáveis e não classificáveis até o momento que finalmente pude dizer as palavras.
— Xeque-mate!
O impacto psicológico em Virgílio foi menor, que sorriu satisfeito com a derrota, do que o que viria a acontecer no limbo.
A grande porta de metal estremeceu como se estivesse sendo forçada por alguém, e pude escutar o destravar de um dos fechos.
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Apócrifos - A porta dos onze fechos
Mystery / ThrillerAnderson Valadares Autor de: "O homem e a caixa"; "A vila das máscaras" e "O moldador de mentes" Narra sua quarta história: "Apócrifos - A porta dos onze fechos" *** A mente humana ainda possui muitas incógnitas, algumas delas talvez jamais cheguemo...