Capítulo XXXV - O beijo da morte

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"O rei do trono de caveiras" era uma das obras que escrevi durante meu período no Harold Brown Asylum, assim como tudo que criei, carregava um pouco de verdade em suas linhas ficcionais. Nela, construí um rei cadavérico e esquelético, com órgãos à mostra que foi condenado a viver eternamente com as partes de seu corpo apodrecendo para sempre, sua sina foi dada pelos deuses após buscar um conhecimento secreto e oculto, restrito apenas aos divinos.

A ideia da figura frágil do rei veio das minhas próprias queixas sobre dores que sentia em todo o corpo e não sabia explicar o porquê. No sanatório convivi com alguns psiquiatras que me diagnosticaram com somatização, que é um transtorno em que a pessoa apresenta múltiplas queixas físicas, referentes a diversos órgãos do corpo, mas que não são explicadas por nenhuma alteração clínica. Na maioria das vezes, provenientes apenas do psicológico da pessoa.

Mas eles não estão em meu corpo para saber o que sinto, então, levei a informação como uma mania dos médicos de nos avaliar em tudo que fazemos, se eu pudesse lhe dar um conselho em vida, esse conselho seria:

Não vá ao médico.

Ainda mais, se esses doutores forem especialistas na psique humana.

Sempre irão encontrar alguma divergência em você.

Ao invés de conversar com eles, aproveitava os meus momentos de folga e descanso no complexo para ler novamente os contos secretos do Nigrum.

Lia apenas quando ninguém mais estava vendo, não queria que pensassem algo sobre o livro de capa preta e seus ensinamentos, pessoas como eles jamais poderiam compreender.

"O beijo da morte

Samaya, apenas observava o que parecia se tornar uma grande alteração no cosmo, vendo seus dois irmãos se divertirem com a criação que outrora pertenceu a seu pai.

Manteve-se sempre atento e imparcial com relação aos acontecimentos que se desdobravam, não escolhia um lado, não defendia uma opinião, apenas esperava com seus longos cabelos brancos prateados e brilhantes o tempo passar.

Porém, até mesmo na nova morada das entidades atemporais, eventos imprevisíveis podem mudar o destino e acarretar um emaranhado de eventos.

Cansados da linearidade do ciclo da vida e morte do homem e da mulher, que nada faziam além de despertar e descansar eternamente, certo dia, Jivana se recusou a dar vida a qualquer outro novo ser.

— Se acaso interromper sua essência irmã, não fará mais sentido que eu exista ao seu lado, pois, de que adianta a morte se não houver a vida? — Mytru, sempre com o semblante triste e melancólico, cabelos negros como a noite, caminhou e se sentou ao lado de sua irmã. 

Juntos, um ao lado do outro, observavam o céu estrelado, que naqueles tempos eram diferentes, luas, estrelas cadentes e um rastro incontável de astros repartiam espaço com corpos celestes jamais vistos pelo homem.

— O mundo é bonito Mytru — Disse Jivana — Mas, não sinto que ele seja realmente vivo, parece que estamos brincando com pequenos pedaços de massa, fazendo eles andarem, nadarem e voarem sem nenhum objetivo, não são eles, somos nós controlando extensões de nossos desejos.

Pela primeira vez em eras, a vida pareceu aborrecida, seus cabelos esverdeados se tornaram mais opacos e sua expressão apagada.

Mytru a abraçou, acolhendo-a e trazendo para perto de sí.

Um cervo, como chamaram, saltitando se aproximou, seguido de um urso e um leão, de um em um, toda a criação que outrora nada fazia quando eram apenas escravos do progenitor, agora pareciam entender a tristeza de Jivana. Buscando trazer suas mais sinceras condolências.
Entretanto, no fundo, Jivana ainda pensava sobre sua capacidade de apenas soprar sua essência em bonecos imaculados.

— Eu queria que eles fossem iguais a nós Mytru... — Ela apontava para o casal humano, sentado da mesma forma que os gêmeos estavam, porém, sem expressar nenhum sentimento ou pensamento. Nem mesmo se comunicavam — Que fossem capazes de sentir, de querer, de desejar, até mesmo de se entristecer.

— Não sei se podemos realizar tamanha ambição, mas, também penso se realmente este seja o melhor para eles. Quero dizer, sinto uma angústia que corroem o meu ser, uma frustração que não queria que outros compartilhassem. Às vezes, a verdadeira ingenuidade é uma benção.
— E os momentos felizes? — Lembrou a vida — A grande parte dos infortúnios que vivemos, são recompensados com os breves, porém, únicos e intocáveis instantes de felicidade. Não queria que eles tivessem a oportunidade de decidir por conta própria se devem ou não batalhar por estas paixões?

Era difícil para morte ver a ventura, assim como, para a vida enxergar a infelicidade.

Permaneceram em silêncio depois disto. Cada um tentando compreender o outro.

Mytru, confuso com um pensamento que há muito tempo carregava, resolveu compartilhar e desenterrar da parte mais profunda de sua alma um sentimento.

— De tudo que passamos e vivenciamos em nossa existência, uma coisa sempre me incomodou e me matou a cada segundo que passamos — Jivana, olhava atenta para o irmão, seus olhos reluziam o céu estrelado enquanto ele falava — Eu não compreendo o amor — Ele fez uma pausa — Não sei se o que sinto por você é comum entre irmãos, ou se esse amor é um erro da minha mente taciturna.

A vida se espantou com a declaração da morte.

— Mytru... eu também não sei explicar a moral e ética do amor, mas, parece tão incomum... somos irmãos... não compreendo como isto funciona...

— Talvez o amor seja essa vontade de querer protegê-la, mesmo sabendo que é você que o faz, talvez o amor traga essa necessidade de estar sempre ao seu lado, de desejar que o tempo esteja a nosso favor, que a maré a traga de volta.

Jivana, mesmo não entendendo a essência do amor, podia ver através das palavras de Mytru uma explosão indescritível dentro de si. Um borbulhar que florescia seus mais nobres desejos.
Seu cabelo voltava a se iluminar, a cada centímetro que o rosto de seu irmão se aproximava, nem mesmo as luas acima de sua cabeça poderiam brilhar mais que seu sorriso, ela não sabia o que era amor, mas se fosse essa a sensação, a queria para o resto da eternidade.

Quando seus lábios se tocaram, houve um choque em todo o planeta, rastros de azul e verde desenhavam o céu em meio ao contraste noturno, como se dois mantos coloridos dançassem uma primeira valsa. A aurora boreal podia ser vista de qualquer lugar do cosmo.

Marcando para sempre a paixão entre a morte e a vida.

Uma fusão que trouxe consigo uma enorme mudança.

Que repercutiria infinitamente pelo tempo". 

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora