Capítulo XXVIII - Vórtices

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"Sem rumo, continuei vivendo com Beatriz após ela falecer no trágico e catastrófico acidente de avião. Eu ainda via seu rosto e escutava sua voz, em determinados momentos até sentia seu toque. Houve uma lacuna de três meses após a fatalidade, neste meio tempo, não fiz nada, não chorei, não dormia, quase não comia, um eterno negro tomou conta da minha alma.

Fiquei taciturno e a depressão consumiu meu pensamento, passei a me dedicar a um novo livro, um que pudesse de fato transcender a barreira da mente e tocar os rostos de minha mãe e Bia".

— Bia? Está fazendo café? Poderia me trazer uma xicara? Acho que esta noite vai ser uma daquelas longas, horas e horas de pesquisa, espero que goste da minha última obra. Ela será minha herança a você! Alguns deixam ouro e joias, outros, memórias de carinho e afeto, eu lhe darei o maior tesouro, a vida eterna! — Falei, esparramando o material sobre a mesa.

Reuni tudo que tinha de conteúdo a respeito do tema que andou lado a lado desde meus primeiros anos, a existência de seres além do cosmo, nem humanos, nem deuses, nem maldosos, nem benéficos.

Entidades que simplesmente sempre existiram, por que eram a essência de algo imutável, o motivo ainda era um mistério a ser desvendado, sua aparência, indescritível, e cada vez que lia sobre acreditava que tudo que passei não poderia ser acaso. Algumas pessoas creem em livre arbítrio, outras em predestinação, eu tenho certeza, que estas entidades são reais.


Comecei a enumerar os fatos, criando uma conexão entre cada momento.

1. O livro que o senhor Lucien me contou, intitulado "a lenda dos dias negros".

2. Os livros apócrifos que não podem ter sua legitimidade comprovada

3. O Nigrum e seus ensinamentos sobre transcender além da constelação do homem

4. Amon Sadat e sua busca pelas estrelas no céu noturno

5. Andrew e a corrupção da alma

6. O paciente 77 e seu caderno de anotações

Depois de tudo posicionado, comecei a ler de forma frenética os textos novamente, tentando olhar por uma nova perspectiva os casos. Aquela agora seria minha última história escrita, a obra prima que sempre desejei entregar as mulheres que amei.

O texto que mudaria a existência de Edgar e me tiraria deste ciclo da vida, um carrossel onde o sofrimento sempre está no cavalo de trás, como uma sombra que persegue independentemente do número de voltas que dou.

Cansado da desgraça gargalhando sob meu luto e dançando de mãos dadas com a tragédia, irei romper esta barreira e de forma não convencional chegar até onde minha mãe reside.

Folheando todos os livros ao mesmo tempo, lendo parágrafos espalhados entre os escritos, não consegui visualizar com tanta clareza quanto aos autores que as criaram, eu era incapaz de ter o estalo de iluminação, a faísca essencial para gerar o fogo dentro de minha mente.

Passei horas, dias e noites, lendo e relendo, anotando toda e qualquer informação essencial, mas ainda sentia que tudo não passava de um mito, uma lenda de algo que somente os loucos pudessem acreditar.

E foi então que pude vislumbrar uma centelha de pensamento.
Uma epifania.

Todos os que falaram ou escreveram sobre os seres que existem além da consciência humana concordavam em um assunto, cada qual a sua maneira quis dizer a mesma coisa.
"Não se pode explicar a insanidade com a sanidade".

Eu não podia pegar literatura feita para cegos e lê-la da mesma maneira que um livro com tinta e letras. Cometi um erro básico, não me adequar e entender o público-alvo. Esta ficção não foi construída para qualquer leitor, caso contrário, todos que tiveram acesso as obras que foram extraídas do paciente 77 pelo Harold Brown e transformadas em entretenimento para novos adultos, teriam captado a verdadeira mensagem. Todas as pessoas que leram "a lenda dos dias negros" veriam mais do que um mito.

Então saí do papel de leitor e me introduzi no de criador, medindo por que cada palavra foi inserida e qual seu sentido verdadeiro.

Somente um louco poderia entender outro louco.

Escolhi uma das anotações do paciente 77, que descobri futuramente ter nome Christopher Allan, tendo sido um proeminente astrônomo e historiador, além de simpatizante da neurociência e psiquiatria clínica. Um homem fantástico esquecido num sanatório por acreditar na existência de entidades conscienciosas responsáveis pela personificação mental de tudo que entendemos como ser.

Fascinado pela ideia de haverem personagens que representam o que acreditamos serem características individuais e únicas, como o orgulho e a empatia. Chris buscou informações nos mesmos escritos que tenho em mãos, para encontrar respostas as suas dúvidas, além de provar sua crença.

Em contato com a lenda de Amon Sadat e posteriormente o Nigrum, definiu e chamou de vórtices as pessoas através dos milênios que foram capazes de abrir um furo no tempo da mente e transcender até as terras da constelação do homem.

Agora eu era Christopher Allan, e escrevia uma das notas que mudou quem sou.

"Todos em algum momento da vida questionamos quem somos, ou de onde viemos, e principalmente para onde iremos, filósofos defendem a arte de pensar como um ato exclusivo do homem, mas e os sentimentos que trazem personalidade a um boneco inanimado? Por que alguns humanos são mais rancorosos que outros? Por que alguns são capazes de odiar ou amar mais intensamente que outros? Por que humildade e orgulho não são ensinados em livros? Por que a cultura os moldou desta maneira? Acho que não, talvez por que estas características não sejam simplesmente nossas, é possível que haja um lugar entre a presença unitária do ser e o infinito cosmo onde a raiva realmente exista, como uma parcela única e inalterável, não imagine um monstro vermelho de cara carrancuda que cospe fogo pela boca, mas algo incompreensível e com formato impossível de explicar, responsável por gerar a raiva em todos.

Os chamo de "Apoteóticos" e descobri a maneira de ter acesso a seu universo, isso quer dizer que você também conseguirá? Depende do quão profundo irá navegar dentro de si próprio, somente os verdadeiros vórtices destruirão a muralha da realidade.

A loucura é o caminho para a sanidade". 

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora