Capítulo 08 - Nomes

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Ao abrir os olhos, fora difícil esconder o incomodo de ver aquele ser, à primeira vista não se parecia com nada que já tivesse visto antes. Mas comecei a reparar um pouco melhor, estava inquieto, andando de um lado para o outro, pequeno, não mais de um metro e meio, a pele inteira de um pálido disforme, parava de tempos em tempos e segurando um dos cotovelos com a outra mão olhava as paredes do limbo aparentando medo.

A característica marcante era a desnutrição evidente, a pele parecia borracha quando puxada, cobrindo uma estrutura óssea exposta, dava para contar todas as costelas.

Mas foi somente quando foquei em sua fronte que lembrei de algo.

A cabeça desproporcional ao resto do corpo, a boca aberta e os olhos arregalados como quem passa noites sem dormir. Tinha certeza que era Edvard.

O grito.

— Ainda não entendo por que estas criaturas tem que se desligar desta forma — Comentou Cleópatra, interrompendo minha reflexão sobre o novo ser que estava conosco no Limbo — Não dá para fazer muitas coisas quando estão paradas.

— É a natureza deles — Respondeu Virgílio — E agora você não deveria se preocupar com isto, seria mais interessante acalmarmos nosso irmão, que como sempre não parece muito bem.

— Irmão... Irmã... ficaremos muito tempo presos aqui? O pai não precisará de nós em Epifania? Fico preocupado em não ser útil lá enquanto permanecemos no limbo. E se esquecerem de mim? Se não notarem minha ausência? Serei esquecido para sempre... não... eu não quero que isto aconteça.

Enquanto Edvard falava, ambas as pernas tremiam freneticamente, e com as unhas grandes rasgava a carne de seu pescoço coçando-o.

— Fique calmo irmão — Falou Virgílio, enquanto se aproximava do nosso novo companheiro de cela — Sabe que jamais permanecemos no limbo para sempre, somos seres que vivemos períodos de tempo seguidos de outros períodos de tempo.

— Mas... e se nos esquecerem por infinitos períodos de tempos...

— Irmãozinho, desde que o limbo foi criado, já o visitei diversas vezes, e em todas sempre regressei a Epifania, não se preocupe, te dou minha palavra que não será esquecido — Cleópatra demonstrou afeição por Edvard.

Ele se sentou e encostou numa das paredes do lugar, acredito que tentando se acalmar um pouco.

— Como Edvard apareceu aqui? — Perguntei.

— Somos seres imateriais, não respeitamos as regras de seu mundo, podemos navegar pelas ondas que compõem o pai, estando aonde nossos pensamentos possam imaginar, isso inclui o pensamento de nossos irmãos — Não sei se por ser mais velha que os outros, mas Cleópatra falava com propriedade as informações que passava.

Por um instante acho que todos haviam se esquecido de mim, pois viraram e me observaram um tempo antes de responder.

— Edvard? — Perguntou Virgílio.

— Sim, igual ao pintor norueguês famoso pelo quadro "o grito".

O palhaço gótico parou por um tempo, como se recordasse de algo, mas nada comentou.
— Vocês nunca me disseram seus nomes — Observei.

— Por que não sabemos — Falou Edvard, baixinho — Segundo o pai, não precisamos saber nada mais além de que somos uma grande família, cheio de irmãos e irmãs, ele nos batiza uma primeira vez ao ascendermos, mas jamais menciona nossos nomes.

Ele fez uma pausa, e coçando a cabeça com ambas as mãos voltou a aparentar nervosismo.
— Sem nome... sem nome fica ainda mais fácil de ser esquecido...

— Escuta, eu também tive problemas com nomes, e sabe o que eu fiz? — Iniciei uma conversa tentando acalmá-lo, ao mesmo tempo que realmente me recordava de mais alguns fragmentos da minha vida.

— O que? — Perguntou, parecendo interessado.

— Eu me dei um novo nome e passei a me chamar Edgar, também alterei o nome das pessoas próximas de mim, fiquei mais aliviado com isto, você pode tentar o mesmo, o que acha do nome que lhe dei?

— Edvard?

— Sim, seu irmão agora chama-se Virgílio e sua irmã Cleópatra.

Achei bonito que ambos sorriram quando mencionei seus novos nomes, como se para mostrar ao caçula que aquilo era legal e ele não tinha com o que se preocupar.

Uma grande família realmente.

— Acho que gostei de Edvard — Falou ele, que mesmo com a expressão cansada, tentou aparentar um sorriso.

E foi somente após todos parecerem mais confortáveis com a condição que percebemos o terceiro fecho aberto.

Paramos por um tempo antes do silencio ser rompido pelo grito de desespero de Edvard, que batia sua cabeça contra a parede e repetia.

— Ele também virá... ele também virá... eu não gosto dele... ele me faz mal...

Virgílio e Cleópatra trocaram olhares e nada disseram verbalmente.

— Quem virá? — Perguntei.

— Ele — Disse Edvard.

Com a apreensão do momento, me lembrei de algo.

Seres sem nome.

Ele.

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora