Desde que me tornei uma pequena celebridade na humilde cidade de Riverside, a editora local passou a me tratar com enorme respeito e garantir certas regalias, uma delas era o livre acesso ao escritório da companhia, onde eu poderia utilizar as instalações para o que fosse necessário. Sempre focando na escrita das minhas próximas obras.
Hoje, como muitos outros dias, continuei na sala pensando e digitando o rascunho de uma nova trama. Todos os funcionários já tinham ido para suas casas repousar, ou talvez, a algum restaurante no centro, já que, esta data de dia dos namorados era o período do ano que a procura por jantares a luz de velas, bons vinhos e ambientes românticos cresciam exponencialmente.
Já passava das nove da noite quando alguém bateu à porta do pequeno cômodo em que estava, me assustei de início, mas logo me reestabeleci e autorizei a entrada.
— Atrapalho? — Perguntou Beatriz, com um sorriso envergonhado no rosto.
— Claro que não, entre por favor.
Ela usava uma roupa social cinza, com um cardigan preto, salto alto e tinha mudado o visual do cabelo drasticamente. O pintou de loiro platinado e trouxe um charme extra a sua aparência e personalidade.
— Sempre pensei que pessoas inteligentes e famosas como você estariam bem ocupadas numa data como a de hoje, sabe o que quero dizer né, devem ter muitas pretendentes esperando que saia daqui — Ela sentou na ponta da mesa, sempre sorrindo.
— Meu único encontro hoje é com algumas personagens e um punhado de palavras, e acredite, são tão interessantes quanto as mulheres invisíveis que me esperam.
Tirei os óculos e limpei a lente com um lenço, estavam um tanto manchados e me atrapalhavam a olhar para a editora.
— Estou ansiosa para editar sua nova história, tenho certeza que seu empenho e dedicação são inteiramente traduzidos para o mundo que cria, tornando-o mais chamativo do que acha.
— Muita gentileza da sua parte achar isto, mas claro que jamais teria conseguido atingir este nível de qualidade se não fosse pelo trabalho que você e todos aqui fazem.— Sabe — Iniciou ela — Tenho muita curiosidade para lhe perguntar algumas coisas, mas não sei se tem tempo para isto, se eu estiver te atrapalhando em seu projeto, posso ir embora e deixá-lo à vontade.
Fechei o notebook e olhei em seus olhos, reparando nas linhas finas de seu rosto.
— Não existe nada mais prazeroso do que conversar com pessoas, é através destes bate-papos instigantes que muitas ideias e aprendizados surgem.
Beatriz deu um breve pulo, aparentando felicidade, em seguida bateu uma palma espontânea e disse:
— Seria muita ousadia propor uma bebida? Quer dizer, se acharmos algum lugar disponível hoje.
— Podemos tentar!
Me levantei, peguei a carteira e o casaco, e fomos andando até o restaurante mais próximo que estivesse aberto. A noite agradável e iluminada, passava uma sensação de descontração.
Encontramos um pequeno restaurante italiano na esquina, como era de se esperar, o local estava cheio, com todas as mesas das laterais ocupadas, pegamos a única mesa livre perto do banheiro.— Algum problema para você? — Perguntei.
— Claro que não — Respondeu ela, sentando-se e pegando a cartela de vinhos.
— Posso sugerir algo para o casal? — Questionou o garçom bem vestido, usando um bigode característico da Itália.
— Sim — Dissemos, juntos.
— Acredito que irão adorar o risoto alla milanese da casa, posso trazê-lo acompanhando de um vinho encorpado regional que apreciarão muito, e de sobremesa preparamos um tiramisu com mascarpone.
— Para mim parece excelente — Falei, e olhando para Beatriz que também concordou balançando a cabeça.
— Sempre tive curiosidade em saber da sua história, de onde vem tanta inspiração e essa benevolência que o faz tão singular.
— Não sei se minha vida é das mais incríveis, acredito que todos nós estamos em algum momento do dia contando histórias, interagindo com o mundo e extraindo dele pensamentos, sensações e paixões que nos atraem. Tudo que faço é trazer um pouco desta realidade para o papel.
— É muito modesto da sua parte achar isto, você é incrível e único, jamais conheci alguém igual. Que leve o trabalho desta maneira, que coloca o interesse das pessoas acima dos seus. Queria poder ajudar também.
— Você pode! — Disse — Basta querer. Não precisa de muito para fazer a diferença, faça o bem a uma pessoa, se na vida dela, ela fizer o bem a outra, já valeu a pena ter colaborado.
Beatriz me olhava diferenciado, apoiando a cabeça nas mãos, os cotovelos na mesa, parecia estar vendo um lindo arco-íris em meio a um campo cercado por girassóis, pássaros cantando e o ar soprando seu nome.
Enquanto arregalava os olhos, e suspirava, continuamos conversando, conhecendo um pouco mais a vida um do outro.
— Tudo que diz soa tão belo, é como se eu falasse com um livro de poesia e filosofia encarnado em um ser humano. Desculpa, sei que não concorda, mas é difícil não o elogiar. Acho que poderia ficar o resto da noite escutando-o.
— Não é bem assim Beatriz, logo verá que sou igual qualquer outro.
Fiquei envergonhado quando ela colocou sua mão sobre a minha e mordeu os lábios.
— Por que me batizou de Beatriz? Pelo que aprendi um pouco, a divina comédia é sua obra preferida, não é?— É sim. Beatriz é a musa inspiradora de Dante na obra, a personificação da fé do jovem poeta, de certa forma, um amor platônico que o faz realizar o impossível. Todos precisamos de uma Beatriz em nossas vidas, não pelo desejo carnal, não pela sexualidade ou dualidade do ser, mas, pelo simbolismo da iluminação em nossa existência, a crença cega que nos move sempre a frente.
— E esse aglomerado de palavras bonitas e lição de vida querem dizer o que? — Sorriu ela, mexendo no cabelo enquanto acariciava minha mão com a dela — Não estou nem perto de uma musa.
— Acho que você me lembra ela se pudesse vê-la fora do poema.
Seu olhar dizia mais que qualquer imagem ou frase.
Durante minha vida, convivi tanto com emoções ficcionais que terminei esquecendo como era a sensação real. Escutar a pulsação acelerada do coração ao me sentir atraído por outra pessoa, boca seca, a vontade de tocar seus lábios molhados.
Como Dante, a jornada tornou-se tudo que sou, e apenas o vislumbre do objetivo me guiou por um indeterminado período. Mas, agora estava quase me entregando ao desejo, depois de tantos anos, acho que posso permitir me envolver esta noite.
Não foram necessárias mais palavras, estávamos na mesma frequência, tudo aconteceu tão naturalmente que me senti jovem de novo.
E algumas horas depois, permanecemos se entregando um ao outro, fundindo nossas almas e parando a ampulheta com a areia do tempo.
Pareceu uma cena saída direto das obras de Shakespeare, uma paixão desenfreada e avassaladora.
— Todas as tardes que ia embora e o via sentado no pequeno escritório, focado, fechado para o resto do universo, muitas vezes pensei em convidá-lo para sair, mas jamais imaginei que um dia estaria aqui com você, não tenho palavras para descrever o quão feliz estou — Beatriz se aconchegou no meu peito, puxando meu braço para que a abraçasse mais forte — Seria muito adolescente te desejar feliz dia dos namorados?
Sorri e fiz sinal de positivo.
Ela me deu um beijo na bochecha.
— Mesmo assim, feliz dia dos namorados!
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Apócrifos - A porta dos onze fechos
Mystery / ThrillerAnderson Valadares Autor de: "O homem e a caixa"; "A vila das máscaras" e "O moldador de mentes" Narra sua quarta história: "Apócrifos - A porta dos onze fechos" *** A mente humana ainda possui muitas incógnitas, algumas delas talvez jamais cheguemo...