Aquela estava sendo uma longa noite de escrita, melhor dizendo, uma longa semana de escrita. Desde que vim para a parte montanhosa da cidade visando finalizar o último romance, não me recordo de ter visto a luz do dia. Escrevendo como se minha vida dependesse daquilo, durante a manhã redigia a maior parte das descrições de cenários e personagens, e durante o período noturno, que considero o mais produtivo, aproveitava a ausência de sono que carrego desde muito tempo atrás para trabalhar nas partes mais complexas da trama.
Permaneci trancafiado, focado em ambientar e absorver toda a carga negativa e opressora que a história tomou em seu fim. A ideia veio de Beatriz, que sugeriu que eu fizesse uma breve viagem de imersão antes do nosso casamento.
Alguns fazem despedidas de solteiro.
Eu escrevo.
E jamais consegui resultados tão expressivos quanto nesta pequena "caminhada espiritual criativa", sem mãos tremendo, dores nas costas, irritações ou breves lapsos de memória, a escrita tem saído fluída e consistente.
Levo minha profissão à sério, uma parte importante e essencial da vida, depois de tudo que passei, consegui transformar a raiva, angústia e desprezo em arte, e de igual forma impactar pessoas que passaram a buscar refúgio na literatura, assim como eu fizera em toda minha jornada.
Durante a trajetória, acumulei marcas que hoje me definem e tornam o homem por trás de "a vila das máscaras" e "o moldador de mentes" alguém especial, tenho orgulho de todas as obras de ficção que criei, mesmo que elas no fundo sejam um pouco biográficas e com ar de melancólicas, são sentimentos reais que sopram a vida nas narinas do ser humano.
Mas nenhuma delas será tão importante e representativa como esta, uma carta escrita pela minha mente para mim mesmo, uma forma de expurgar todas as decepções e amargura presentes no livro da vida, cortando o fio das tecelãs do destino que prenderam a felicidade numa pequena caixa sem identificação, e entregaram-na a qualquer pessoa para escondê-la de mim.
Mas um dia este homem encontrou a caixa.
— Espera... já sei... talvez seja um ótimo nome... simbólico e misterioso... "o homem e a caixa"... este será o nome desta obra — Falei sozinho, cortando o silencio da madrugada, que se resumia a zumbidos de insetos vindos da floresta e ao som ambiente da composição "lux aeterna" de Clint Mansell, música tema do álbum e base do filme "Réquiem para um sonho".
A abertura da minha caixa pessoal trouxe uma neura por organização e padrões simétricos, um medo involuntário de coelhos, insônia, dificuldades de interagir com estranhos...
— Difícil este contato com os novos fãs..., não faço por mal... espero que entendam...mas estou melhorando nisto.
Mas em contraste a tudo isto, como se o karma do universo conspirasse a meu favor, me trouxe Beatriz, uma bonita, vigorosa e carinhosa princesa. Detentora de um amor descomunal que preencheu todos os buracos negros deixados pelo meu passado.
Nem mesmo a mente confusa e o distúrbio puderam barrar sua vinda até meu coração.
Devo muito a você floco de neve.Em breve estaremos casados e farei o impossível para torná-la a mulher mais feliz do cosmo.
— A dedicatória desta história será inteiramente sua de corpo e alma.Por mais que a saudade estivesse no ápice, eu ainda precisava focar na finalização do trabalho para estar uma vez mais em seus abraços quentes e lábios molhados.
A cabana que escolhi era afastada de tudo, não havia internet nem sinal de celular, por um breve instante nesta semana, houve uma solitária e repentina barra de transmissão, que serviu para trazer as notificações das doze ligações perdidas e inúmeras mensagens deixadas por Bia. Não li os textos e nem me atrevi a retornar, como ela mesmo disse, "por mais que a saudade aperte, você deve manter-se forte e não me atender, está bem lobinho?".
E me mantive firme.
Faltava pouco, mais o último capítulo revelador e estaria pronto para voltar.
O computador não ajudava muito, lento e travando, entretanto, não tinha outra opção, saí às pressas para minha repentina viagem, deixei meu notebook em casa com problemas e trouxe o de Bia, não avisei ela, talvez por isto esteja desesperada me ligando, ela odeia quando uso suas coisas.
Mas a causa é nobre, acho que irá entender.
Quando estava dando nome ao capítulo "a penitência dos nove", houve um congelamento da tela, nem mesmo o ponteiro do mouse aparecia. Resolvi por me levantar e esticar o corpo, perdi a conta de quantas horas passei sentado, fui até a cozinha e deixei o café sendo preparado, tirei a roupa ali mesmo e fui até o banheiro tomar um banho quente e me masturbar com a lembrança da minha gostosa futura esposa.
A água quase chegando na temperatura escaldante tocando a pele, a escuridão absoluta e a sequência harmônica da quinta composição de Beethoven me deixavam anestesiado, uma renovação espiritual que por tanto tempo busquei, algumas vezes fundo demais, outras vezes na sombra do fundo poço.
Em tantos anos de história, agora poderia dizer que estava completo.
Após o banho, peguei a xícara de café e retornei à mesa do escritório, me surpreendendo por ainda ver o computador travado. Usando os atalhos no teclado, fechei todas as abas e fiquei por um tempo olhando a tela inicial que tinha uma infinidade de ícones, porém, um deles me atraiu a atenção, "Free hide folder" é um software utilizado para esconder arquivos, por que Beatriz teria este tipo de programa?
Respeito a privacidade de todos, assim como gosto que respeitem a minha, mas uma sensação ruim passou por mim, como se tudo fosse acontecer de novo, a desgraça eterna que se mantém como uma auréola sob minha cabeça.
Abri o aplicativo que solicitou uma senha de acesso, após algumas combinações sem sucesso de tudo que ela gostava e de menções a personagens da ficção e literatura clássica que passou a admirar com o tempo, pensei numa hipótese.
Por mais que minha mente não quisesse acreditar naquilo, digitei a pequena palavra de três letras.
Ele.
Ao apertar a tecla enter e solicitar visualização das pastas ocultas, já sabia que estava num caminho sem volta.
O primeiro arquivo que abri foi equivalente a uma facada direto no coração.
Se fosse para resumir toda a carga emocional em uma palavra, teria uma perfeita.
Morte.
Era o fim.
Depois de tudo que passei, não teria forças para me reerguer.
O filme da minha vida passou rápido e pude compreender a sina.
A morte do ego.
Hiperconsciência.
Vórtices.
Nigrum.
Eu não sou Edgar, eu sou Lúcifer.
Acho que estou vendo algo.
Eu entendo.
Isto é.
Epifania.
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Apócrifos - A porta dos onze fechos
Mistério / SuspenseAnderson Valadares Autor de: "O homem e a caixa"; "A vila das máscaras" e "O moldador de mentes" Narra sua quarta história: "Apócrifos - A porta dos onze fechos" *** A mente humana ainda possui muitas incógnitas, algumas delas talvez jamais cheguemo...