Capítulo XXXI - Compulsão

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— O que está fazendo pequeno Ed? — O senhor Lucien estava bisbilhotando por cima do meu ombro, tentando ver o que eu escrevia na folha de papel.

— Como escreve o nome do homem louco que naquele dia o senhor leu a história pra mim? — Perguntei, anotando para não esquecer o que entendi do livro dos dias negros.

— Amon?

— Esse! Como escreve?

— A-M-O-N.

Marquei rápido e continuei a contar minha versão do que escutei, eu precisava anotar, precisava mesmo, se não poderia esquecer.

— Está escrevendo sobre "a lenda dos dias negros", pequeno? Não acha que escreve demais para sua idade? Não precisa colocar na folha exatamente tudo que te contam.

A barriga redondinha do senhor Lucien esbarrou na mesa enquanto ele tentava sentar na cadeira do lado da minha em sua mesa.

— Deveria então ligar o abajur! — Ele apertou o botão que trouxe um clarão que fez meus olhos arderem — Está muito escuro aqui para enxergar alguma coisa.

Desliguei de novo, e voltei a forçar a vista para seguir com as palavras.

— Deixa escuro mesmo, me ajuda a pensar como seria se fosse igual na história — Peguei a página que havia terminado e coloquei junto de outras tantas.

Tinha um cantinho na biblioteca que eu podia guardar todas minhas notas, ficava bem embaixo na prateleira, o senhor Lucien dizia que não gostava daquela parte, por que era difícil de pegar alguma coisa.

Ele é gordinho, e agachar não é tão simples, a barriga atrapalha.

Dei risada em minha cabeça. É engraçado, não é?

— Diz sobre quando a lua e as estrelas desapareceram em meio ao infinito manto negro que cobriu o céu? — Ele se levantou, levou o abajur para mais longe, e o ascendeu mais uma vez, agora chegou uma luz fraca onde eu estava.

Ficou melhor mesmo.

— Como acha que foi senhor Lucien? Parece até que alguém puxou a cordinha da luz, e desligou o céu — Perguntei, imaginando como seria olhar para cima e não ver nada.

— Talvez tenha sido realmente isto!

— Como assim?

— Quando mergulhamos de cabeça nestas lendas e mitos, passamos a fantasiar algumas possibilidades, também já pensei a respeito destes tempos, acordar de manhã e ver que tudo continuava negro, como seria a vida das plantas e seres sem o sol? Teria sido uma catástrofe, mas tenho a impressão de que se alguém foi responsável por isto, não tinha a intenção de aniquilar a vida na terra, e sim, apenas fechar a porta da sua casa.

Tentava escrever tudo que estava escutando, aquilo fazia mais sentido do que minha versão, não que Deus não podia ter apertado o botão para desligar as luzes, igual as irmãs fazem na igreja antes de irem dormir. Mas o senhor Lucien é inteligente, confio no que ele fala.

— Ele não podia usar uma chave para trancar a porta? Era mais fácil do que apagar tudo. Pelo menos é o que eu acho.

— Podia sim garoto! Talvez essa fosse a chave dele.

— Talvez essa fosse a ch...

— Ainda está anotando? Se passar a vida transferindo a comunicação para os registros, vai focar em marcar e esquecer de aproveitar o que está ouvindo.

— Eu preciso senhor Lucien! Na paróquia o padre me obriga a registrar todos os versos que falam no culto, tenho que marcar se não fico de castigo. Uma vez, um tempo atrás, quando ainda não sabia escrever direito, errei a palavra "Deus" colocando na folhinha de leitura "Deu", fiquei três dias preso no quartinho... O padre disse que brincar com o nome de Deus era muito sério, mas eu não queria errar, eu não sabia direito senhor Lucien.

— Eu sei que não Ed! Não é sua culpa..., mas pare para descansar um pouquinho, eu continuo pra você.

— Você não entende, preciso fazer eu mesmo, me sinto mal quando não anoto. O padre fica muito bravo, faço todos os dias — Me deitei sobre o papel, para não deixar que tomasse de mim.

— Tudo bem... eu te entendo — Ele colocou a mão em minha cabeça, e bagunçou meu cabelo — Todos nós temos nossas próprias pequenas obsessões diárias.

— Obsessões?

— Sim! Desde que não atrapalhe sua vida, não faz mal algum, quando eu era mais jovem, lembro de ter me apaixonado pela simetria do homem vitruviano de Leonardo da Vinci, o equilíbrio da criação e a perfeição da estrutura humana. Jamais consegui deixar meus livros desordenados depois desta fase, uma mania de organizar tudo e colocar cada objeto em seu devido lugar, gasto muitos dias quando tenho que fazer limpeza, dá trabalho, mas assim como você precisa escrever, eu preciso que esteja tudo adequado ao meu padrão.

— Então eu tenho uma obsessão senhor Lucien?

— É o que parece, mas não deixe que isto afete seus dias. Quer ver o homem vitruviano?
— Quero! — Gritei, animado com uma coisa que nem sabia o que era.

Então o senhor Lucien foi num armariozinho empoeirado, abriu e pegou um papel enrolado, o trouxe até a mesa e desenrolou.

Era a imagem de um homem com quatro braços e quatro pernas, também estava com o piu-piu de fora. Coloquei ambas as mãos na boca espantando e dei uma risada sem querer.

— Ele não tem cueca senhor Lucien? E por que tem tudo isso de braços? — Perguntei, ainda olhando para o homem estranho.

— Não... ele não tem... — Ele coçou a testa — São apenas dois braços e duas pernas, só que desenhados em posições diferentes, para mostrar a simetria que nosso corpo possui, se ficar de pé e levantar os braços, verá que conseguirá ficar do mesmo jeito que ele.

Subi na cadeira e fiquei como se fosse voar.

— Assim senhor Lucien?

— Exatamente! Está igualzinho ao desenho! Só tome cuidado para não cair.

— Se eu tivesse quatro braços, poderia escrever duas vezes né, seria muito mais rápido.

Falando nisto.

Acho que preciso anotar a história deste homem de quatro braços que escreve com várias mãos.

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora