— Você é a constelação do homem? — Perguntei, olhando para a garotinha de roupas escuras que ainda estava sentada ao meu lado.
— Não! — Respondeu ela — Ninguém pode definir o que é a constelação do homem, cada pessoa enxerga de uma maneira particular e única. Alguns a viram no céu, outras em sua própria mente, até em sonhos ou em símbolos.
— Então vocês realmente existem? — Apesar de atordoado, tonto com a atual descoberta da morte de Beatriz, que no fim, não era tão atual. Ainda assim, conseguia ter uma sensação de conforto. Com a impressão de que a verdade tirava a venda dos meus olhos, me possibilitando de vislumbrar algo bloqueado até este momento da minha vida. Um sentimento que expressava um súbito entendimento e compreensão da essência da alma.
A menina balançava os dedos indicadores no ar, como se estivesse dançando uma música árabe. Foi então que pude ver pela janela, do lado de fora da cabana, Beatriz acenando e sorrindo enquanto asas brancas apareciam de trás de suas costas e a faziam levantar voo, deixando penas ao vento.
— O que você acha Edgar? Acha que existimos? — Perguntou a garota de cabelo em corte Chanel, com um rosto afetivo.
— Acredito que sim... mas minha mente está uma confusão, eu posso estar louco...
— Para você, o que é estar louco? Ter atitudes incomuns aos demais de sua raça? Eu enxergo coisas que nem mesmo meus irmãos conseguem entender, mas não é por isto, que sou categorizada como louca, simplesmente me entendem como alguém com particularidades.
A cabana estava começando a se desfazer em minha volta, se desmaterializando e dando espaço a um fundo negro. Eu parecia estar saindo da terra e entrando na imensidão do cosmo.
Breves cenas da minha vida estavam espalhadas pelo local, num canto da cozinha enxerguei minha infância, na porta que dava ao quarto, a juventude, sob o sofá da sala a vida adulta, e bem em frente aos meus olhos, momentos mais atuais, mostrando-me sozinho, vestido com as roupas de Beatriz, digitando em seu celular, imitando sua voz e acreditando ser ela.
Me vi tomando notas em cima da mesa, conversando comigo mesmo, alterando a voz, e interagindo como se várias pessoas estivessem numa grande conversa intelectual.
Aquele era o estágio final de uma jornada de insanidade e descoberta. Sinto que tive que passar por tudo para finalmente entender o que os escritos de Virgílio no Nigrum resplandeciam.
'A jornada é mais importante que o objetivo, o desejo acaba, o caminho não. Infelizmente algumas pessoas estarão sempre aprisionadas a suas mentes enquanto não descobrirem que não importa o que deseja, mas sim, quem realmente são'.
Aceitar meu destino e saber que sou Edgar, filho com muito orgulhoso de Geórgia, crescido numa paróquia cristã em uma pequena cidade no interior, escritor de histórias que tanto me trouxeram felicidade, marido de Beatriz, o anjo mais belo e gentil que conheci, era mais que suficiente para me livrar do fardo que o luto e a solidão me proporcionaram.
Tinha certeza de que a loucura era apenas um rótulo dado por pessoas que não compreendiam a magnitude de Minak.
Eu não necessitava de nada mais, estava completo, pleno e iluminado.
— O desejo acaba. O caminho não — Falei, sorrindo — E agora? Para onde seguiremos? É o fim?
— Longe disto! É o começo! — Respondeu a menina, acelerando ainda mais as ilusões que estavam projetando minha vida, como se um trem carregando vagões de pensamentos estivessem passando por ambos os lados — Agora, entraremos no poço dos esquecimentos.
— E o que seria este poço?
— Uma necessidade para adentrar o reino dos Apócrifos. Precisará antes de partirmos, abandonar suas memórias, seus anseios e angústias. Deixará aqui até mesmo suas lembranças mais intimas e profundas. Assim, poderá seguir sua trajetória como um renascido.
— Como posso chamá-la criança das ilusões? — Questionei.
— Para onde irá, saberá tudo a respeito de quem sou, assim como todos saberão sobre você. A porta dos fechos trará todas as respostas que procura. Mas, antes, terá que continuar caminhando.
Me sentindo leve como uma pena, isento de dor e mágoas. Percebi a mente sendo puxada para fora de minha própria cabeça, como se alguém estivesse absorvendo o mal que todo ser humano constrói durante a vida. Rasgando a tela carregada com cores escuras e marcantes, e substituindo-a por uma nova, em branco, pura e virgem.
Transformando às lágrimas em paz.
O choro em alegria.
A morte em vida.
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Apócrifos - A porta dos onze fechos
Mystery / ThrillerAnderson Valadares Autor de: "O homem e a caixa"; "A vila das máscaras" e "O moldador de mentes" Narra sua quarta história: "Apócrifos - A porta dos onze fechos" *** A mente humana ainda possui muitas incógnitas, algumas delas talvez jamais cheguemo...