Capítulo XXVII - Paciente 77

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A entrada escondida atrás das prateleiras revelou um pequeno quarto oculto, não mais de dois metros quadrados, paredes acinzentadas, onde diversos rabiscos completavam a decoração, algumas palavras foram escritas em sangue, símbolos e esboços de "pessoas" também estavam presentes no mural amador.

Uma cama retrátil improvisada e uma escrivaninha com um abajur em cima eram os únicos objetos, ainda sob a cômoda havia um livro e uma caneta.

Mas nada disto era mais apavorante, do que a figura do homem decrépito, enrugado e deteriorado que estava amarrado a uma cadeira de rodas por fivelas de couro, o cabelo branco desgrenhado e a estrutura corporal abaixo da desnutrição remetia a uma múmia fora do sarcófago, aparentava ser mais antigo que o próprio tempo.

De início, tive dificuldades em discernir se estava vivo ou morto. Me aproximei a passos vagarosos, em choque com tal situação, procurei encontrar e construir uma linha de pensamento que conectasse o que estava vendo, a realidade e ao que procurava.

Ele estava posicionado de frente para a mesa, a caneta estava amarrada com linha a sua mão direita, que mantinha apoiada no livro, com braços tão finos, não podia imaginar como conseguiria mantê-la suspensa no ar se necessário. Já me aproximando, a menos de um metro do velho homem, vi um movimento lento, mas firme, do pulso daquele aparente doente.

De maneira brusca, dei um pequeno salto para trás. Aquilo ainda respirava, como seria possível? E quem era?

— Olá... o senhor consegue falar? — Perguntei, tentando me colocar a uma posição que ele conseguisse me visualizar, já que seu corpo provavelmente não viraria para me responder.

Não obtive nenhuma palavra, apenas tentativas forçadas de escrever algo no papel.

Direcionei minha atenção para o que seu fraco corpo tentava fazer.

— Não consegue falar? Precisa que eu o ajude? Posso tirá-lo daqui!

O silêncio continuou, e visivelmente usando a pouca energia que ainda tinha, pude ver sua mão dando forma a algum algarismo. Bem devagar, ele termina o primeiro caractere, que parecia ser um sete. Em seguida, quando o vi repetindo o movimento do primeiro, não tinham mais dúvidas sobre o que era aquele homem.

— Paciente 77? Então é mesmo você? Precisamos tirá-lo daqui! Ou irão nos encontrar.

Quando me projetei para puxar sua cadeira de rodas, pude perceber uma resistência, fraca, mas perceptível.

— O que foi? Não quer sair daqui? — Falei, agoniado, pensando numa maneira de sair daquele lugar carregando um homem numa cadeira de rodas sem ser visto.

Notei que ele ainda tentava continuar a escrever, bem possível que naquele estado aquela fosse sua única forma de comunicação. Mesmo com pressa, esperei para ver o que ele escrevia.
Um novo número surgiu.

Desta vez com três dígitos.

217.

Demorei um tempo até associar a informação a algo real, sabia que se tratava de uma mensagem, mas qual? O que ele queria me dizer? Seria aquele o número de registro de outro paciente do sanatório?

Tentando raciocinar o mais rápido que pude, foi então que cogitei que pudesse ser uma localização, mas onde? Só poderia ser em um único lugar, no próprio livro que ele rabiscava. Procurei pelas numerações das páginas, que não haviam. Então contei desde a primeira até chegar na 217.

Com letras cansadas e tremidas, havia uma espécie de carta. Quando o vi afrouxando o pulso e relaxando a mão, entendi que era exatamente isto que queria que eu fizesse. Pegando o livro nas mãos, comecei a ler o conteúdo.

"Eu dizia palavras sensatas, eles escutavam asneiras, demorei para perceber que só existe comunicação quando se fala o que as pessoas querem ouvir.

Eu trazia o futuro, eles rasgavam o passado, ignorando os sinais que aqueles sábios antes dos tempos atuais afirmaram ver e sentir.

Eu busquei expandir a mente, eles retraíram o pouco que tinham para quase extinguir o ser, nos assemelhando aos animais que reprimem o padrão incorreto. Corrigindo um que não respeite a manada.

Eu contei para minha família sobre a constelação do homem, eles me prenderam num quarto sem janelas, afirmando ser loucura o que não conseguem entender.

Eu expliquei para meus médicos a fórmula por trás do Nigrum, eles me prenderam em outro quarto pior, amarrado com cintas apertadas, buscando ascender em meio ao desespero.
Eu escrevi minhas histórias recheadas de veracidade, eles tomaram-na de mim e a levaram como ficção.

Eu mostrei o caminho para se atingir a imortalidade da alma, eles usaram-na para criar um atalho para o dinheiro.

Eu recuperei meu livro preto, eles o tomaram de volta.

Eu escrevi minhas últimas palavras nele com meu próprio sangue, eles me trouxeram a vida de novo.

Eu queria escrever sobre a nova vida, eles me obrigaram a falar de morte.

Eu vi os seres além do cosmo, eles os transformaram em personagens de entretenimento.

Eu transcendi a sanidade, eles ainda punem os insanos.

Eu falei, ninguém escutou.

Eu escrevi, ninguém leu.

Eu irei para um mundo onde nenhum de vocês estarão, eles jamais descobrirão.

Eu viverei eternamente, eles morrerão sem saber que existirão".

Mais uma vez em minha vida, estava confrontando o tema que me acompanhou todos estes anos, a lenda dos dias negros parecia ser algo mais concreto do que eu realmente imaginava, o paciente 77 foi o homem que marcou em sangue o Nigrum com sua nota de desespero.
Depois dele, Andrew também sucumbiu a seu mistério.

Amon Sadat nos primórdios dos tempos iniciou esta apoteose aos seres transcendentais.

Tudo parecia convergir para que eu fosse o próximo desta lista de sanidade insana, o herdeiro a seguir e desvendar o segredo oculto aos humanos.

Quando voltei meu pensamento a fuga que estava prestes a fazer, pude perceber um sorriso na expressão daquele homem.

— Nós vamos sair daqui! — Afirmei, o desamarrando.

Foi então que senti seu toque, ele levantou o braço e colocou sua mão sobre meu ombro. Com uma voz rouca e lenta, sussurrando cada palavra, disse:

— É tarde demais jovem, este corpo velho e cansado já não pode mais suportar minha alma impaciente, devo partir agora e deixar que outros vórtices assim como eu vislumbrem o que poucos homens em vida puderam ver...

— Mas ainda podemos salvá-lo...

— Não se preocupe, pegue este caderno, leve-o contigo. Um vórtice sabe reconhecer outro quando o toca — Sua tosse era seca, tinha sérias dificuldades em continuar se comunicando — Procure a constelação do homem, você será capaz de encontrá-la.

— Senhor?

Quase pude enxergar a alma do paciente 77 deixando o corpo, em seus últimos momentos ainda sorria.

Eu não quero mais presenciar a morte.

Será este meu destino?

Apócrifos - A porta dos onze fechosOnde histórias criam vida. Descubra agora