Quando retornei minha alma ao limbo, o local que estava antes de ser atingido pelo flashback, com os olhos marejados pela lembrança, assustei ao ver Virgílio e Cleópatra investigando juntos a grande porta de aço impenetrável.
O segundo fecho havia sido aberto e com ele uma parte importante da minha vida fora revelada.
— Peregrino? Algo incomum está acontecendo aqui no limbo — Disse Virgílio — Minha irmã não está conseguindo retornar a Epifania e também não tivemos sucesso no contato com o pai.
Desde o momento que despertei neste lugar e encontrei Virgílio, fiquei atiçado pelo novo e curioso em desvendar os mistérios ali expostos, esquecendo completamente de minha situação, e até o presente instante, quando pude reviver uma pequena parcela de vida, não sentia desespero pela escassez de informações de ambos os mundos.
É sufocante rever alguém tão importante e não correr até seus braços, pedindo auxilio, tentando uma última vez, quem sabe dizer algo.
Pedir perdão e seguir em paz.
Será que continuarei para sempre nesta sala? Vivendo entre dois universos, como numa ilha cercada pelo oceano, sem saber se um dia verei outra pessoa ou lugar? Olhando o céu azul e não estas paredes de blocos de concreto?
Será a memória uma desgraça? Me fazendo lembrar do rosto de Beatriz, para em seguida tirá-lo de mim da forma mais cruel, tornando possível vê-la apenas em sonhos, ou talvez pesadelos.
O que fazer quando não se sabe o que fazer?
Estou preso.
Sou doente.
Sou doente.
Estou preso.
O que eu faria se soubesse o que fazer?
Possivelmente pararia por alguns segundos, pensaria sobre uma solução, buscaria fazer o melhor com o que tenho, agindo dentro das atuais possibilidades, minha vida passada nada ajudará nos meus problemas aqui no limbo.
— Talvez ajude sim — Disse Cleópatra, mais uma vez lendo minhas reflexões, e interrompendo meus pensamentos — Não me dá prazer ler sua mente... pensando bem, talvez um pouco, algumas imagens safadas também cairiam bem às vezes — Completou ela — Essa é minha natureza.
Nada comentei, suas observações quem sabe tivessem um pouco de sentido.
— O que quer dizer com "talvez ajude"? — Questionei.
— O fecho se abriu no momento que resgatou sua lembrança sobre Beatriz e seus desejos eróticos, enquanto recordava a si próprio agarrado contra o corpo dela. Isso me faz lembrar que caso esteja se sentindo sozinho, podemos fazer algo juntos... não sei... algo divertido.
Os momentos por vezes inapropriados que Cleópatra utilizava para falar sobre sexualidade e prazer me lembravam um pouco a mim mesmo, entendia que não agia daquela forma por maldade ou insensibilidade, mas por um distúrbio mental forte que corrompia as entranhas e me tornava escravo de algo que não conseguia deixar para trás.
Mesmo assim, era horrível, sentir-se como um animal irracional, incapaz de viver em harmonia com outros seres superiores em inteligência e controle.
Viver com uma culpa impossível de perdoar, uma necessidade involuntária e agressiva que fez Beatriz sofrer.
— Acha que minha memória tem alguma relação com os fechos? — Perguntei, retornando ao raciocínio.
— Talvez — Respondeu Virgílio, sempre utilizando a mesma palavra que não concluía nada.
— Só há um jeito de sabermos — Continuou Cleópatra — Devemos tentar.
— Tentar?
— Isso lindinho.
— Como? — Questionei, buscando uma forma de validar a ideia.
— Igual fez agora há pouco, suponho — Virgílio roía as unhas da mão direita enquanto pensava.
Se os seres que ali conheciam estavam presos e não tinham certeza sobre o que estava acontecendo, minha melhor chance era de fato tentar, mesmo sem saber como.
O desafio era superar as barreiras de minha mente, aquela se tratava de uma batalha interna, muito mais complexa que qualquer esforço físico.
— Então? O que fazemos? — Cleópatra ficara parada olhando alternadamente, esperando que de maneira mágica resgatasse tudo sobre meu passado.
— Não é tão simples assim — Falei — Se funcionar como na lógica matemática da terra, deve ter tido um gatilho que acionou a parte do meu cérebro responsável por buscar as memórias escondidas. O que conectou o presente com o passado.
Percebi confusão em suas expressões, nosso modo de pensar é diferente, e talvez a lógica nem faça sentido aqui.
— Palavras verbalizadas — Disse Virgílio — A forma como se comunica, através de sons, a palavra falada tem diferença, minha irmã conversava com você após despertar do sono, e suas palavras podem ser o gatilho que procura. Diga algo a Edgar irmã.
— Te quero — Falou.
Virgílio me olhou com entusiasmo.
— Funcionou? — Perguntou ele.
— Não acho que seja assim que funcione — Afirmei — No momento que entrei no estado de regressão, eu tinha uma conexão forte com o que acabara de refletir, lembrar de Beatriz, ouvir de Cleópatra que ela seria quem eu quisesse que fosse foi a chave para voltar no exato momento da minha história cuja situação era similar ao que ouvira e pensara.
E aquilo fazia sentido, já que, estava enfrentando minha própria mente.
— Acredito que o caminho seja falarmos sobre nós, talvez escutando de vocês como eram suas vidas, eu possa encontrar relações com a minha própria.
— Para que falarmos sobre nossas vidas, se todos sabem o que fizemos ou pensamos — Observou Cleópatra.
— Edgar não veio de Epifania, ele não compartilhou nossas ações ao longo dos períodos pelo pai — Virgílio se aproximara, ajustando a cartola na cabeça e sentando-se ao meu lado — Venha irmã, façamos uma roda e conversemos sobre tudo.
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Apócrifos - A porta dos onze fechos
Mystery / ThrillerAnderson Valadares Autor de: "O homem e a caixa"; "A vila das máscaras" e "O moldador de mentes" Narra sua quarta história: "Apócrifos - A porta dos onze fechos" *** A mente humana ainda possui muitas incógnitas, algumas delas talvez jamais cheguemo...