O barulho do despertador no celular, deixado embaixo do travesseiro, fez com que Aline acordasse. Logo o desligou e se sentou na cama. Ainda de madrugada, a adolescente observou o quarto escuro e esfregou os olhos. Após se espreguiçar, aguardou. Sabia que a mãe logo apareceria.
Cerca de um minuto depois, escutou os passos. A porta do quarto foi aberta de forma vagarosa, e Isabel ali surgiu acompanhada de uma lanterna. Sorrindo, chamou a filha com a mão, que a seguiu quarto afora, pelo corredor. Ambas andando sorrateiramente para não acordarem mais ninguém da casa. Desceram os degraus até chegarem à cozinha. Nesse cômodo, a luz foi acesa.
Aline se sentou e espalmou todas as digitais na parte de baixo da mesa. A leitura ocorreu rapidamente, como esperado, e o caderno virtual surgiu nas mãos dela. O produto contrabandeado por Isabel era usado para as aulas, nas quais Aline, anos atrás, aprendeu a ler e escrever, prática desconhecida pela população. Sempre que perguntava o motivo de aprender aquilo e onde a mãe conhecera, recebia uma resposta vazia ou a desculpa de que ainda não era o momento de saber. Mas uma coisa Isabel sempre deixara claro: ninguém poderia desconfiar de que Aline era alfabetizada. Por mais que ficasse sem entender exatamente o que lhe aconteceria caso descobrissem, achou melhor seguir a recomendação.
Depois de conhecer as letras, as aulas mudaram de foco. Em sua maioria, falavam sobre acontecimentos passados, de como era o Brasil antes de os militares tomarem o poder. Aquilo que aprendia às escondidas antes era algo normal, de acesso a todos. Existiam pessoas dedicadas ao ensinar e lugares especializados em transmitir conhecimento. Totalmente diferente da realidade atual, na qual só havia o emprego e a família na vida das pessoas. No entanto, sempre que o assunto começava a enveredar por um viés contrário ao governo, Isabel se negava a dar continuidade. Aline já tinha quinze anos e entendia muito bem que a mãe a achava jovem demais para compreender a verdade que tanto ansiava saber.
Após muita insistência, Isabel prometeu que naquela aula entraria mais a fundo em alguns temas. Por isso, Aline estava ansiosa pelo momento, tanto que acompanhava o caminhar da mãe pela cozinha, mal esperando a hora de ela começar.
Usando a geladeira branca como lousa, Isabel escreveu ali alguns tópicos que a filha logo passou para o caderno. Depois, sentou-se diante de Aline, tomando ar para dar início à aula.
— É difícil mencionar o começo da alienação, mas algumas coisas são de consenso daqueles que ainda sabem a história verdadeira... Primeiro, a partir de uma liberdade e democracia falsificada, as pessoas foram levadas a acreditar que a escola se tornara obsoleta. Mais que isso, a escrita perdera o uso imediato e era irrelevante. Havia um grande grupo que acreditava nisso, o que levou ao fechamento das instituições de ensino, inicialmente da população mais pobre. Houve protestos, claro, porém logo eles foram silenciados.
— Mas... Tudo isso chegou assim? Do nada? — enrugou a testa.
— Não, filha. Foi tudo tão gradativo que as pessoas mal perceberam o que estava acontecendo — chegou mais perto e abaixou o tom de voz. — As que notavam e faziam alarde eram presas ou simplesmente sumiam.
Aline sentiu um tremor. Por mais que saber os detalhes lhe causasse certo desconforto, procurou manter-se impassível. Queria conhecer toda a verdade, já tinha idade para isso.
— Segundo — Isabel retornou para perto da geladeira —, a criatividade se tornou um problema, já que também tinha a função social de criticar a sociedade. Colocá-la em algo tão permanente quanto um registro seria uma ameaça. Isso levou à criminalização da ficção, que passou a ser chamada de mentira.
O discurso foi interrompido pela própria professora quando ouviram passos pesados no andar de cima. Leonel, o pai de Aline, acabara de acordar e vinha rapidamente pela escada.
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País Imerso [completo]
Science FictionLIVRO 1 Sinopse: É durante as madrugadas que Aline é acordada pela mãe para que possa estudar. Escondida, ela aprende a história do país, algo esquecido há tempos pela sociedade analfabeta, e o que levou os militares ao poder. Aconselhada pela mãe...