Capítulo 33

199 44 33
                                    

Depois de tudo o que presenciou, Aline ficou em estado de choque. Não pronunciou uma palavra sequer durante todo o caminho de volta; os olhos mantinham-se vazios, vagando pelo nada; nem brilho tinham. Mônica ainda tentou conversar com a amiga, mas ela continuava inexpressível. Ainda demoraria muito para absorver tudo o que vira e fizera.

Os caminhões com os militares adentraram o Complexo Militar de São Paulo por volta das onze horas. Enquanto todos desciam, Aline permaneceu sentada, imóvel, encarando as próprias mãos sobre o colo. Mãos que tiraram a vida de incontáveis pessoas, uma delas mãe de uma menininha. Quando tremeram, fechou os punhos. Dessa vez, os olhos se encheram de lágrimas.

César pedira para se manter no sistema, transformar a dor em força, porém percebia que não daria conta de tudo aquilo, não daquele jeito, não carregando tantas mortes nas costas.

— Aline — Mônica a chamou. — Vamos sair daqui — como não obteve resposta, tocou-a no ombro e a balançou. — Ei, você está me ouvindo?

Nenhum movimento. Sequer tinha forças para responder, só queria que tudo o que transbordara voltasse para o lugar onde os prendera. Mas viu ser impossível. Era como se precisasse sentir tudo aquilo, reviver cada vida que tirou, já que na hora não deu a devida importância.

— O que ela tem? — Alexandre se aproximou. Mônica balançou a cabeça em negação. O rapaz se agachou em frente a Aline, que piscou por causa da presença dele. — Você está bem? — tocou-a no rosto, e esse gesto fez uma lágrima dela escorrer.

Na mesma hora, ele largou tudo o que carregava, sentou-se ao lado dela e a abraçou. Afundando o rosto no peito dele, sem que aguentasse mais segurar tudo aquilo, chorou de soluçar, agarrando-se ao uniforme de Alexandre.

— Calma — afagou os cabelos dela. Abraçava-a de forma acolhedora. — Eu também não estou tão feliz como achei que estaria depois dessa missão. Mas dizem que você se acostuma a matar rebeldes.

Palavras erradas. Tudo o que não queria ouvir. Empurrou-o para longe, tirando os braços do seu redor.

— Idiota! — esbravejou ainda chorosa. Esfregou o rosto violentamente e saiu do caminhão ainda meio trôpega, carregando seus pertences.

Mônica gritou por ela, porém Aline não parou e ainda começou a correr. Entrou no vestiário esbaforida e apanhou uma mochila pessoal de dentro do armário. Trancou-se em uma cabine e pegou o teclado e o livro, enfiando-os ali. Voltou a guardá-la no armário. Ainda lavou o rosto para se livrar das marcas das lágrimas e escovou os dentes como se aquilo fosse tirar o amargo da boca. Sentou-se em um dos bancos por ali no vestiário já mais tranquila. Ao ameaçar se desfazer da roupa da missão, o comunicador na orelha chiou. César a chamou, pediu que fosse até o gabinete da general. Logo após dizer que estava indo, um medo a dominou. O que Samara queria com ela? Respirou fundo e se encaminhou para o terceiro andar.

Nunca tinha entrado no gabinete da general. Ao parar em frente à porta, engoliu em seco e bateu duas vezes. Assim que foi autorizada, abriu-a. Na sala retangular, maior do que os outros gabinetes que conhecera dentro do Complexo, havia uma mesa de madeira polida e o grande símbolo da nação desenhado em um painel atrás de uma cadeira confortável. Nas paredes, fotos de outros militares que julgou serem os generais anteriores a Samara. Mantendo a postura confiante, adentrou o ambiente e parou diante da mesa, da qual a general se levantou. César e mais alguns oficiais que participaram da missão também estavam na sala. Bateu continência.

— Cabo Aline Lemos — começou a general —, o capitão Mendes me contou do seu bom desempenho em campo — um discreto sorriso apareceu, mas logo se foi. — Nunca alguém tão jovem matou como você o fez nessa missão.

Aline tensionou o maxilar e assentiu com a cabeça, inclinando-a um pouco para frente, submissa.

— No mais, só queria parabenizá-la.

— Obrigada, general Macedo — os lábios tremiam, e se sentiu enjoada por agradecer. O gosto ruim na boca se intensificou.

Samara saiu de trás da mesa e se aproximou de Aline.

— Grandes feitos precisam ser recompensados. Por isso, subirei sua patente para terceiro-sargento — estendeu-lhe a mão, Aline a apertou. — Parabéns pela promoção. Que você sirva de exemplo para os demais. É a oficial mais jovem a alcançar esse cargo, ainda mais em tão pouco tempo.

— Mais uma vez, obrigada, general — bateu continência.

A general pediu que o capitão chamasse Alexandre Guerra e Mônica Machado na sequência. Subiria a patente de ambos também. Ao ser dispensada, procurou pelos olhos de César antes de sair e viu neles um carinho quase paternal, um sorriso de canto. O objetivo era subir de patente o mais rápido possível.

Saiu da sala com a cabeça girando e muito enjoada. Precisou se recostar em uma parede para respirar. Apesar de tudo o que sentia, era como se o corpo estivesse em um estado desconhecido. Os movimentos não estavam mais precisos, assim como os pensamentos. Colocou a mão sobre os olhos que ardiam por causa da iluminação do corredor.

Voltou a andar devagar e totalmente imersa em devaneios: mortes, mentiras, conhecimento, dores... Encontrava-se no segundo andar quando ouviu lhe chamarem o nome. Virou-se e viu Heitor. A presença dele trouxe alívio, ainda mais ao abraçá-la.

— Você voltou inteira — tocou-a no rosto e a beijou em seguida. — Fiquei preocupado.

— Estou bem dentro do possível — tentava sorrir, mas o desânimo a consumia.

— Acompanhei você pelas câmeras desde que chegou. Vi que a general te promoveu — acariciava o dorso da mão dela. — Isso é muito bom para a sua carreira — hesitou, o que a fez franzir levemente o cenho. — Talvez não te investiguem novamente.

— Por que diz isso?

Ele hesitou mais uma vez, e ela teve certeza de que escolhia muito bem as palavras que diria.

— Aconteceram muitas coisas de ontem para hoje aqui...

Tirou a mão da dele ao perceber que titubeava.

— Me diga de uma vez, Heitor.

Ele umedeceu os lábios e suspirou.

— O Beto foi executado ontem à tarde.

Aline perdeu o chão, as pernas bambearam e precisou cobrir a boca numa tentativa de aliviar a expressão. Mesmo assim, os olhos se inundaram de lágrimas, ainda mais por ter prometido a ele que o tiraria de lá. Prometera a vida, a liberdade. Deu um passo para trás, sentindo-se tonta.

Quis perguntar mais a respeito, mas não soube como entrar naquele assunto sem se entregar. Estavam sendo vigiados. Apenas encarou o namorado, esperando que ele explicasse.

— A general deu a ordem, e ele foi fuzilado — Heitor continuou. — A execução foi transmitida ao vivo pela televisão, e ainda deram os parabéns a você e ao Alexandre pela captura e morte dele.

O riso forçado veio junto de uma lágrima. Mais uma morte creditada a ela.

Chegou a acreditar que aquela notícia era tudo o que Heitor queria lhe contar, mas a expressão dele sequer suavizou. Em vez disso, enrijeceu ainda mais o corpo. Empregava força nas mãos fechadas e evitava encarar Aline nos olhos. Quando perguntou a ele o que mais tinha acontecido, viu-o travar o maxilar. Sem avisos, abraçou-a, encostando os lábios na orelha dela. A voz saiu baixa, tensa:

— A Giovana foi detida e acusada de traição à nação e contato com rebeldes.

Todo o ar em volta de Aline desapareceu. Era como se estivesse caindo num buraco sem fim.

— Ela já foi torturada e interrogada algumas vezes. Está nas salas do subsolo.

Giovana...

Deu passos para trás, afastando-se de Heitor. O olhar dele pedia, quase em súplica, que não fizesse nada, que continuasse calma, que esperasse. Só que não podia. Era Giovana! Apenas balançou a cabeça em negação antes de disparar pelo corredor com o destino traçado.

— Aline! — gritou o namorado, mas nada nesse mundo a faria parar.

Correu como se sua vida dependesse daquilo. A sua não, a de Giovana.

País Imerso [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora