Dentro do ônibus, Giovana olhava atenta para a tela que transmitia notícias. Desde o dia anterior, o atentado ao Complexo Militar vinha sendo noticiado. O discurso tendencioso era repetido sem parar. Já tinha até decorado.
O Complexo Militar de São Paulo foi covardemente atacado por um grupo ainda desconhecido de rebeldes. O local sofreu uma sabotagem no sistema de segurança e foi alvo de bombas plantadas previamente. Não houve mortes, mas os feridos foram contabilizados em oito. Graças aos esforços dos militares presentes, nenhuma das crianças que visitavam o Complexo se feriu. Isso mostra mais um ato dessas pessoas perigosas que tentam acabar com a paz da população. Hoje foi a sede militar e as crianças, amanhã será o quê?
Depois, informava que os militares sairiam em missão. Não entrava em detalhes, até porque era sigiloso, mas faziam questão de mostrar as fotos de alguns que estariam presentes justamente para reforçar o caráter heroico. Dentre eles, Aline aparecia. Por isso que Giovana prestava atenção cada vez que a notícia era transmitida. A imagem de Aline ficava poucos segundos na tela, mas já era o suficiente para Giovana suspirar de saudade e preocupação. Em que ela estaria se enfiando? Será que era seguro?
Desceu do ônibus no ponto de sempre e caminhou pelas ruas movimentadas olhando para baixo, como de costume. Andava devagar, sem pressa. Ora pensava em Aline, ora no caderno que não encontrara. Chegou à conclusão de que a amiga se saíra bem no interrogatório, caso contrário as pessoas estariam comentando, a notícia seria veiculada. Ou não... Acreditava tanto assim nas informações que recebia? O governo mentia, o exército mentia...
De qualquer forma, sentia que Aline estava bem dentro do possível. Quis muito entrar em contato com ela, ligar, mas tinha receio de atrapalhá-la de alguma forma. Quando fosse possível, faria uma visita. Assim poderiam conversar sem entraves.
O assunto do caderno ainda lhe rondava a mente. Convencia-se de que alguém da família o pegara e jogara no lixo, na pura maldade. Ninguém comentara o ocorrido, e ela não puxaria assunto.
Quando entrou em casa, a invasão do Complexo passava na televisão. O pai e o irmão estavam sentados no sofá, prestando atenção. Mesmo que não quisesse ficar ali, até porque ninguém a cumprimentara quando chegou, parou apenas para ver, a última vez naquele dia, a foto de Aline.
— Aposto que vão fazer algo grande — comentou o pai. — Tenho certeza de que veremos em breve eles anunciarem que os militares tomaram alguma providência em relação aos rebeldes. Espero que matem vários deles. Rebelde bom é rebelde morto.
Aline é uma rebelde, pensou Giovana ao ver a foto dela. O sorriso apareceu no canto da boca. Saber a verdade trazia uma enorme satisfação, ainda mais ao presenciar o pai dizer aquilo, enaltecendo uma rebelde. Se havia Aline ali no meio, tinha certeza de que existiam outros. Torceu para que os rebeldes estivessem planejando algo e que em breve tomassem o governo. Nada a deixaria mais feliz do que aquilo.
Dava as costas à televisão quando ouviu fortes batidas na porta. Quem quer que estivesse ali, não se deu ao trabalho de tocar a campainha ao lado do portão, apenas foi entrando. Na mesma hora, o coração dela deu um pulo, o que a fez parar de andar e olhar para a entrada quando o pai se levantou para atender. A mãe, que vinha do quarto, aproximou-se dela para ver o que acontecia.
Logo que a porta foi aberta, a primeira coisa que enxergou foi o uniforme do exército. Uma mulher e um homem estavam ali parados.
— Com sua licença, senhor — a mulher falou enquanto adentrava a sala sem que fosse convidada. — Recebemos uma denúncia — passou os olhos pelos presentes e os parou em Giovana por breves segundos antes de voltá-los ao pai. — Giovana Martins é sua filha?
Em pânico, Giovana deu um passo para trás. Os olhos da militar voltaram para ela sem esperar pela resposta. De tudo que poderia ter acontecido, sequer imaginou que a mãe a seguraria com força pelo braço.
— É ela! — disse alto. — Podem levá-la!
Os militares se aproximavam, decididos, mas Giovana só conseguia manter a atenção na mãe, que sequer se dava ao trabalho de encará-la. Tratava-a como se não fosse importante, como se um dia não a tivesse parido e amamentado. Não havia amor, agora enxergava isso com mais clareza do que nunca.
Por um segundo, desejou ter o amor daquela mulher, o amor de mãe, de alguém que a protegeria de tudo e de todos. Quis ter o amor igual ao de Isabel para Aline. No segundo seguinte, só pôde sentir mágoa, ódio. Teve ainda mais certeza de que estava sozinha. Só dependeria dela mesma.
Agindo o mais rápido que pôde, soltou-se da mãe e correu. Sabia que não iria longe, que eles a pegariam, porém precisava lutar, pelo menos um pouco. As lágrimas lhe marcavam as bochechas, descendo com rapidez a cada passada em direção à cozinha. Sequer chegou ao cômodo de destino. Derrubaram-na, e ela caiu com o rosto no chão. O gosto do sangue já lhe tomando o paladar.
Foi algemada, mas não a levantaram. Continuou com o rosto no piso enquanto o militar foi até o quarto dela. Ouviu-o revirar tudo, jogar coisas no chão, quebrar o que podia ser quebrado. No corredor, apenas ela e a mulher que a segurava no chão com o pé, como se fosse um saco cujo conteúdo era descartável. A família continuava na sala talvez indiferente, talvez feliz.
— Nada — avisou o sujeito à companheira minutos depois.
— Já temos o suficiente — pegou Giovana pelo braço e a colocou em pé. — Gorda desse jeito, muito me espanta que tenha conseguido correr — e a empurrou para que andasse.
De cabeça baixa, com os cabelos lhe caindo no rosto, obedeceu. O corpo doía por causa do impacto, e as lágrimas escorreram, silenciosas, pois sabia que as torturas do exército seriam infinitamente mais doloridas. Eles a machucariam de verdade.
O militar foi à frente e despediu-se da família com um aceno de cabeça. Giovana só apertou os olhos. Não queria nunca mais vê-los.
— Levem-na logo daqui — disse o pai, como se festejando. — Essa inútil só podia ter se envolvido com rebelde mesmo.
As palavras recebidas sequer a atingiram. As lágrimas que ainda lhe marcavam o rosto não tinham ligação com eles, com a denúncia, e sim com Aline. Todos sabiam da relação entre elas, e temeu que isso pudesse significar problemas para a amiga. Aline era sua única preocupação.
Na calçada, as pessoas que por ali passavam e até alguns vizinhos pararam o que faziam para observá-la ser jogada brutalmente na parte de trás do carro, projetada para transporte de presos. Bateu o braço e fez uma careta por causa da dor que tomou conta dele. Mais uma. Fecharam-na ali, e ela se sentou e afundou o rosto nos joelhos.
Seria levada à interrogatório e torturada. Porém, de uma coisa tinha certeza: não contaria nada que pudesse prejudicar Aline.
VOCÊ ESTÁ LENDO
País Imerso [completo]
Science FictionLIVRO 1 Sinopse: É durante as madrugadas que Aline é acordada pela mãe para que possa estudar. Escondida, ela aprende a história do país, algo esquecido há tempos pela sociedade analfabeta, e o que levou os militares ao poder. Aconselhada pela mãe...