Capítulo 11

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César adoçou o chá e o experimentou antes de levá-lo para a esposa. Meire agradeceu com um sorriso fraco e bebericou a bebida quente. Ele sentou-se ao lado dela à mesa e a observou, percebendo como a vida começava a deixá-la. O nariz mantinha-se vermelho, as olheiras marcavam de forma permanente o rosto e os olhos perdiam o brilho gradativamente. Com frequência, precisava lembrá-la de comer, pois sempre se esquecia, já que não sentia fome.

— Não me olhe assim, querido — acariciou os cabelos escuros do marido. — Estou bem.

— Por enquanto — pegou-a pela mão e beijou o dorso, afagando-a em seguida. — Preciso dar um jeito de tirar você daqui antes que chegue o próximo período de vacinação.

— Temos alguns meses ainda. Quem sabe até lá as coisas já não estarão de outro jeito — voltou a sorrir, porém logo suspirou. — Estou com saudades do Alexandre. Você entrou em contato com o acampamento? — ele negou. — Quando o fizer, fale com ele, tudo bem? Tenho medo de que ele não se adapte a essa nova realidade.

— Ele irá, ainda mais com a influência da Aline. Ele é apaixonado por ela — riu na companhia da esposa.

Continuaram conversando enquanto Meire bebia o chá. Por insistência dele, comeu uma fatia de pão. Antes de sair para o trabalho, beijou-a, desejando um bom dia e dizendo que a amava. Durante o trajeto, só pensava no filho e no que ele estaria achando dos rebeldes. No fundo, tentava se convencer de que Alexandre aceitaria tudo aquilo de bom grado, que não causaria problemas por causa de sua personalidade difícil. Em muitos momentos culpou-se por ter postergado a verdade. Se o tivessem criado com ideais rebeldes desde o começo, tudo seria diferente, até a própria relação com Aline, de quem ele gostava. Eles poderiam ter dado certo desde o começo, assim não o teria condenado a um amor platônico.

Sorriu com a lembrança da própria adolescência e do amor que nutriu por Meire sem ser correspondido. Ela era apenas dois anos mais velha, mas antes a diferença de idade parecia enorme, ainda mais por ela já estar no exército quando ele percebeu o que sentia. Isabel sempre o incentivou a conversar com Meire, dizer o que sentia, mas tinha medo. Só após também ingressar no serviço militar e se estabelecer, depois de alguns meses, que se sentiu mais confiante. Só que ela foi ferida em campo, o que a deixou hospitalizada por várias semanas. O medo da rejeição dava lugar ao de perdê-la, o que lhe proporcionou a coragem para se declarar. Achou que fosse pegá-la de surpresa, porém ela só sorriu.

— Prometi para mim mesma que me declararia a você se saísse viva dessa.

Ela foi seu primeiro beijo, único amor. Junto dela, receberam a notícia de que Meire perdera um ovário por causa do ferimento a bala e o útero tinha sofrido várias lesões, fora a infecção que estava sendo tratada, o que poderia inviabilizar uma gravidez. Os danos ao corpo foram tão graves que ela teria de ser vacinada novamente mesmo estando com dezoito anos.

Meire ainda ficou mais alguns dias em tratamento. Quando saiu, casaram-se. O primeiro aborto espontâneo os pegou de surpresa, abalando-os. Vê-la sofrendo doía mais do que a possibilidade de nunca ter filhos, ainda mais não podendo fazer nada para diminuir a dor dela. A segunda perda o fez querer desistir, mas ela insistiu. Meire sempre quis ser mãe.

Depois de tantos anos juntos, ainda admirava a força da esposa. Ela era sua inspiração, a quem dedicava todos os dias, por quem lutaria até o fim. Se fosse preciso, se nada mudasse em poucos meses, abandonaria tudo para tirá-la de dentro do sistema.

Chegou ao Complexo Militar com o nascer do sol, ligou o comunicador e o colocou na orelha. Antes mesmo de descer do carro, o chiado do equipamento lhe tomou a audição. Ao atender, o coronel o avisou de que teria de receber um carregamento dentro da próxima hora.

Confirmou que estaria a disposição e encerrou a ligação. Com isso, encaminhou-se para o gabinete dedicado a si e ajeitou alguns pertences antes de ir para o desembarque de cargas. Saiu do prédio principal, dando a volta nele, e parou em frente a um pequeno galpão. Ali encontrou outros militares, que também esperavam pelo carregamento. Ao indagar a eles se sabiam o que estava chegando, todos negaram. Suspirou. Se ele, o capitão, desconhecia, era mais do que óbvio que pessoas de patentes menores não teriam conhecimento.

Minutos depois, um caminhão do exército atravessou o portão de cargas e parou diante deles. Os soldados que desceram bateram continência para o capitão, que os mandou descansar.

— Do que se trata esse carregamento? Não me passaram nada a respeito — dirigiu-se a uma das militares que veio junto do carregamento.

— São novas drogas, capitão — ela informou e fez sinal para que os outros começassem a descarregar. — Foram desenvolvidas para usarmos em interrogatório. Elas forçam as pessoas a dizerem a verdade.

Por fora, César apenas assentia e agradecia a informação, mas por dentro se desesperava. Drogas da verdade? Sempre soube que o governo vinha tentando desenvolver algo parecido, não tendo sucesso por algum motivo que ele desconhecia. No entanto, agora estavam ali, sendo distribuídas.

O capitão ordenou que os soldados levassem as diversas maletas para dentro do Complexo, empilhando-as em uma sala da enfermaria, onde todas as drogas eram mantidas. Acompanhou todo o processo e, ao terminar, ficou lá dentro olhando tudo aquilo com espanto. Havia substância suficiente para drogar toda a população de São Paulo. Engoliu em seco e precisou enxugar o suor que brotou na testa. Dessa vez, não teve como se manter confiante. O pânico surgiu, fazendo-o imaginar várias formas de tudo o que os rebeldes vinham construindo desmoronar de uma única vez.

Disfarçando o tremor nas mãos, enfiou-as nos bolsos e saiu de lá. Andou até seu gabinete e se sentou na cadeira, observando o nada. Perguntava-se se o fato de terem descoberto duas famílias rebeldes dentro do sistema em tão pouco tempo assustou o governo. O medo de que houvesse mais militares rebeldes começava a rondar os complexos, e as drogas que recebera só provava isso. Estavam agindo rápido.

Apoiou a cabeça nas mãos para conseguir pensar. A única certeza de que tinha no momento era de que precisava avisar aos rebeldes o quanto antes. Se algum deles fosse capturado, toda a verdade seria de conhecimento do governo; tudo que construíram seria jogado no lixo, e a chance de tirar aquele governo sanguinário do poder poderia nunca mais existir.

Respirou fundo diversas vezes para se acalmar e pensar com clareza. Nada poderia ser feito enquanto estivesse em horário de trabalho. Mas, na primeira oportunidade, agiria.

Dessa forma, prosseguiu com as atividades normalmente, olhando o tempo todo para o relógio de pulso. Assim que o horário do almoço chegou, foi para casa em vez de fazer a refeição no Complexo como de costume. Meire estranhou a chegada dele, que logo avisou o que ocorrera. Viu-a ficar pálida e precisar se escorar em algo por causa da tontura. Mesmo assim, ela se forçou a continuar e segurou o marido pela mão.

— Não podemos mais perder tempo — e o levou para o quarto do casal.

Assim que entraram, César empurrou o guarda-roupa para o lado e puxou para cima um piso solto. Embaixo dele existia um compartimento secreto de onde tirou um antigo rádio comunicador envolto em um saco plástico.

Sentou-se ao chão e Meire também. Ela o segurou pela mão enquanto ele ligava o aparelho. A luz vermelha em cima dele piscou, e o barulho de chiado preencheu o ambiente. A cada segundo que César demorava para sintonizar, o nervosismo se intensificava no casal por causa da possibilidade de que a qualquer momento a nova droga pudesse ser usada em um rebelde.

País Corrompido [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora