Capítulo 34

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Etama recusou em tom de voz irritado, porém baixo, a ajuda da irmã. Ela queria fazer aquilo sozinha, tinha de fazer aquilo sozinha; provar a si mesma que conseguiria se despedir de uma forma minimamente digna da pessoa que mais amou na vida.

Sabia que não era certo pensar daquela forma, mas foi inevitável: eles estavam em um grupo relativamente grande, por que justo Ana? Um instante a mais ou a menos e ela poderia estar viva. Só que não era mais o caso, ela estava morta. Morta!

Após mais um galho se quebrar nas mãos dela, dessa vez cortando a palma, Etama gritou de ódio e o arremessou para fora do buraco que conseguira cavar na terra. Sem refletir direito sobre aquilo, desistiu de qualquer coisa que pudesse ajudá-la na tarefa e continuou a cavar, só que agora com as mãos. Por mais que não quisesse continuar chorando, as lágrimas teimavam em lhe marcar o rosto e caíam no tecido sujo da calça. As dores nos membros logo apareceram, mas ela não cessou a atividade, em sua mente só havia a imagem de uma Ana sorridente contrastando com uma Ana sem vida.

Perdeu a noção do tempo enquanto cavava, nem mesmo a escuridão da noite a fez parar. Por mais que Naara estivesse parada ao lado da cova improvisada com uma lanterna e pedindo que Etama usasse algo além das mãos, não lhe deu ouvidos. Só parou mesmo quando os dedos estavam em carne viva e a dor se tornou impossível de ignorar. Analisou o buraco não tão fundo como queria, mas percebeu ser o seu máximo.

Saiu da cova e se ajoelhou ao lado do corpo de Ana. Os cabelos loiros dela estavam vermelhos por causa do sangue e escondiam o corte causado por alguma parte do avião que a atingira na cabeça. Mesmo assim, alisou-os. Encostou a testa na dela, sentindo-a fria, e pediu desculpa por não ter conseguido salvá-la. Depois, pegou-a no colo e a colocou dentro do buraco que cavara. Ao depositá-la ali, manteve os olhos nela enquanto a dor por saber que nunca mais a veria a dominava. Respirou fundo, fechou os olhos para tomar coragem e saiu da cova. Foi empurrando aos poucos, devagar, os montes de terra ao mesmo tempo que as memórias referentes a Ana eram revividas dentro dela.

Mesmo que ainda fossem jovens, tanto Naara quanto Etama já sabiam que teriam de ser as líderes rebeldes quando se mudaram em definitivo para o acampamento. E tudo só piorou quando os pais morreram. Por causa da enorme responsabilidade que carregavam, algumas pessoas preferiam não ficar muito perto delas, deixando-as afastadas para resolver todos os problemas e se dirigindo a elas para tratar de assuntos exclusivamente da causa rebelde.

Durante uma missão de extravio de armamento, na qual interceptariam um caminhão do exército, Etama foi ferida na perna e precisou de cuidados médicos da equipe de outro acampamento rebelde que os ajudava. E foi nesse dia que conheceu Ana. Pela primeira vez em anos, alguém a tratava como uma pessoa comum, e não como a líder rebelde. Nunca acreditou em amor à primeira vista, mas foi exatamente o que aconteceu entre elas.

Ao retornarem para o acampamento das líderes com o armamento necessário, Etama não conseguiu se esquecer de Ana, porém sequer sabia como agir a respeito. Quando chegava perto dela, com um discurso pronto ou algum assunto para iniciarem uma conversa, esquecia-se de tudo na hora em que ela sorria. Por mais que percebesse nas atitudes dela a vontade de estar ali, de estreitar a relação de ambas, sequer conseguia tomar uma atitude, e Ana também não.

Com o passar dos dias, frustrada consigo mesmo, sentindo-se inútil, soube com pesar que a equipe do outro acampamento se preparava para ir embora. Como Ana iria com eles, achou melhor deixar os sentimentos de lado. Seria melhor daquela forma. No entanto, surpreendeu-se quando ela se ofereceu para permanecer ali, ajudando nos serviços médicos. Durante toda a fala dela, mantinha os olhos em Etama.

Nunca se sentiu tão contente e achou que era o momento mais feliz de sua vida, porém se enganara. Ele aconteceu minutos depois ao acompanhar Ana até o quarto destinado a ela em definitivo, já que passaria a morar ali. Ao pararem de frente para a porta, Etama ainda procurava as palavras certas para expressar o que sentia, só que dessa vez não precisou, pois Ana a tocou no rosto, calando-a da tentativa de manter um diálogo, e a beijou, fazendo-a esquecer de todos os compromissos. Naquele dia mesmo passou a dividir aquele quarto com ela.

Ana ficou no acampamento e com o coração de Etama. Por mais que ambas não fossem boas com esse negócio de sentimento, encontraram um meio de se entenderem e foram se soltando com o tempo. As diferenças nítidas entre elas sequer atrapalharam a convivência, era como se uma completasse a outra. Ana era mais risonha, mais acessível, mais calma, porém tão determinada quanto a líder. Para Etama, ela era forte, mais resistente do que a maioria dos rebeldes. Lidava com situações de pressão muito melhor do que Etama, algo que admirava nela.

Infelizmente, agora tudo era passado.

A cada porção de terra a cobrir o corpo, sentia o próprio peso aumentar; quando terminasse, tudo o que mais queria era desabar em alguma posição confortável e esperar o sono dopá-la.

Se é que seria capaz de fechar os olhos naquela noite.

***

A noite reinava, com a lua alta no céu, quando Etama terminou de cobrir o corpo de Ana. Assim que desabou, Naara a amparou e a levou para o acampamento improvisado. Em silêncio, andaram lentamente até o local. Naara sequer ousou comentar algo, só desejava estar ali para consolar a irmã da melhor forma que lhe fosse possível.

Ao chegarem até onde todos estavam, sentou Etama escorada em uma árvore e pediu ajuda a Caio para limpar os ferimentos dela, que não se moveu em instante algum nem para reclamar de dor. Tinha o olhar perdido.

Logo que terminaram, precisou da ajuda de Ítalo para colocar Etama em um saco de dormir. Mesmo que a irmã não estivesse dormindo, parecia não ocupar o próprio corpo. Após ajeitá-la, ainda a acariciou no rosto e sussurrou que logo voltaria para ficar com ela.

Ao se afastar, foi interceptada por Flávia, que a atualizou da localização do grupo. Com um mapa eletrônico, ela indicou os arredores para a líder enquanto dizia:

— Consegui situar nossas coordenadas, felizmente estamos perto do acampamento rebelde. Ele está a leste daqui.

— Entendo, creio que seja melhor eu os contatar antes de qualquer movimentação nossa, pode haver armadilhas por perto, e eles estão mais familiarizados com esse terreno do que nós.

Flávia assentiu e entregou o rádio comunicador a Naara. A líder ajustou o equipamento e torceu para que conseguisse entrar em contato sem problemas. Houve uma leve demora, e o chiado tomou o ambiente por alguns segundos antes de conseguir sinal com o acampamento.

Quem fala? — a voz chegou aos ouvidos de Naara inicialmente sendo um pouco cortada, porém, quando perguntaram pela segunda vez, ouviu com clareza. Logo a reconheceu.

— Aqui é Naara Villas Boas. Cris, é você?

Naara? Que bom saber que é você. Aqui é a Cristiane, sim. O sinal está bom demais para você estar falando de longe. Qual a sua posição?

Estendeu o rádio para Flávia, que deu as coordenadas.

É mais ou menos perto. Um grupo sairá daqui a agora e deverá chegar ao amanhecer. Vocês passarão bem a noite aí? — Cristiane quis saber.

— Não se preocupe, ficaremos bem. Já passamos por muita coisa, uma noite aqui não será tão problemática assim — Naara disse e depois se despediu.

Com a ligação encerrada, chamou Catarina, Eric e Aline para conversar. Repreendeu-se por não ter iniciado o treinamento deles para a liderança rebelde. Bem, teria de começar de algum lugar e nada melhor do que o momento. Dessa maneira, informou-os sobre o que acontecera há pouco referente ao outro acampamento e pediu que dividissem o grupo para fazerem a vigia. Reforçou que apenas as pessoas saudáveis deveriam fazer aquilo. Eles assentiram e, assim, ela avisou que ficaria junto da irmã.

Sentou-se perto de Etama, que fingia dormir, e sequer se importou, limitou-se a acariciara cabeça dela e a cantarolar baixinho uma canção na língua materna ensinada pelos pais. Mesmo no escuro, com pouca luz vindo das lanternas espalhadas por ali, observou lágrimas silenciosas escorrerem dos olhos da irmã. Não era para menos, cantava a mesma música que Etama a confortara após a morte dos pais.

País Corrompido [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora