Capítulo 19

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Tatiana sentiu o coração saltar ao ouvir o som do carro estacionar na garagem. Empurrou as cortinas para o lado para ter certeza de que o marido chegara em casa. Com a confirmação, sentou-se no sofá e respirou fundo. Há dias pensava em maneiras de contar toda a verdade a ele e até cogitou seguir o conselho de Meire Guerra e continuar escondendo. Sabia que o marido demonstraria resistência com o assunto, até porque cresceu dentro do sistema como toda a população alienada. Na verdade, tinha medo da reação dele. Mas contar a verdade era algo que decidira fazer, afinal eles se amavam. Ele teria de entender.

Enquanto ele abria a porta, agradeceu que tivesse ficado até mais tarde no trabalho. Assim pôde colocar as crianças para dormir e evitar que o clima estranho se formasse entre eles durante o jantar, pois ela não conseguiria disfarçar a ansiedade de lhe revelar tudo.

Logo que entrou na sala e a viu, sorriu daquele jeito que a encantou no primeiro olhar. Ele era um homem alto, poucos centímetros a mais que ela, branco e de cabelos castanho-claro. Aproximou-se dela e a beijou. O sorriso ainda presente chegava aos olhos cor de mel.

— Desculpa a demora, hoje o trabalho estava um caos! — acariciou-a na bochecha e se virou para deixar a mochila sobre a mesa de centro. — Transações demais em um dia, mas acho que vai compensar no final do mês.

— Imagina, Miguel — engoliu em seco na tentativa de afastar o nervosismo e trazer de volta a coragem que ia se esvaindo. Fechou as mãos e as abriu para aliviar a tensão. — Eu já coloquei as crianças na cama. Preciso falar com você...

Ele a encarou com uma ruga entre as sobrancelhas. Ao perguntar o que queria conversar, Tatiana pediu que se sentasse ao lado dela. Percebeu a preocupação no rosto do marido e a hesitação em se acomodar no sofá. Quando fez o que pediu, ela lhe segurou a mão e fixou os olhos nos dele. Ainda respirou fundo mais uma vez antes de começar a falar.

No início, Miguel a encarava com a testa levemente franzida, mas após alguns minutos ouvindo o relato, a expressão refletia horror e pânico. Tatiana acabara de trazer à luz o segredo que carregou a vida toda. Contou a ele sobre a infância em uma família rebelde, a educação recebida e que o governo vinha mentindo para toda a população. Não entrou em detalhes sobre este último tópico, pois temia a reação do marido. Era coisa demais para um único dia. Quando terminou de falar, esperou que ele fizesse algo.

Os segundos de silêncio, que sucederam a verdade acerca do fato de ser uma rebelde que lutava contra o sistema, só deixavam mais em evidência que Miguel não aceitaria tudo com facilidade. Ter ainda mais consciência disso lhe trazia uma sensação de sufoco. Estava ficando impossível respirar com a pressão que havia entre eles.

A primeira reação de Miguel foi tirar a mão que estava entre as da esposa e se afastar um pouco no sofá. Apoiado no braço do estofado, passou as mãos pelo rosto e fechou os olhos. Permaneceu assim por longos segundos. No momento em que voltou a encará-la, um olhar severo lhe tomava a fisionomia.

— Tatiana, me fala que isso não é sério — sentou-se de lado para ficar de frente para ela. — Esse tipo de brincadeira não tem graça.

— Eu nunca falei tão sério antes, Miguel — esforçava-se para se manter firme e transmitir a verdade para ele.

Ele jogou a cabeça para trás e negou mais de uma vez.

— Deixa disso, você é uma militar! Primeiro-tenente! Não pode ser uma rebelde.

— Mas eu sou.

Os olhos dele estavam arregalados, vidrados nela, como se esperasse que a qualquer instante fosse desmentir tudo o que dissera e pudessem começar a rir, desfazendo o clima ruim que se instalara. Só que nada daquilo aconteceu. Então Miguel se colocou em pé e deu passos sem destino pelo ambiente.

— Miguel, sei que é muita coisa, mas você precisa acreditar em mim. A vacina dos quarenta anos mata a população em vez de...

— Não! — esbravejou, o que a fez parar de falar. Ele lhe apontou o dedo. — Você não faz ideia do que está fazendo comigo! Com a nossa família aliás. Como espera que eu a deixe sozinha com as crianças depois de todas essas mentiras que você está falando do governo?

Tatiana abandonou a posição calma e permitiu que a raiva a dominasse. Ficou em pé, de frente para ele, e afundou o dedo no peito do marido.

— Mentira? Você sequer me deixou falar sobre o governo! — indicou o sofá. — É melhor você se sentar, pois agora vou contar tudo o que o governo que você tanto defende vem fazendo. E não me interrompa, sabe que odeio isso.

Ele travou o maxilar e estreitou os olhos. Tatiana usava toda a pose que aprendera no exército para lidar com o marido. Havia um motivo para ela ser uma militar e ele não. Miguel apenas bufou e se sentou.

— Então agora é assim? Primeiro você mente e agora me ameaça?

Ela revirou os olhos.

— Se fosse uma ameaça, você estaria com uma arma apontada para a cabeça — disse simplesmente e se acomodou ao lado dele.

— Apenas fale — resmungou.

Ela foi direto ao ponto, resumiu a história sobre o governo vigente, as mentiras, a contaminação da água e a covardia quanto à vacina. Ocultou apenas a questão da droga da verdade, pois aquela informação era valiosa demais para contar sem antes confiarem novamente um no outro.

Miguel continuou em silêncio, observando o chão, apertando uma mão na outra. Ao se virar para a esposa, a voz saiu devagar, em um tom baixo, visivelmente em uma tentativa frustrada de controle.

— É muita informação. Você por acaso tem alguma prova?

— A história é passada pelas gerações de rebeldes, e muito do passado antes do golpe está registrado em livros.

— E as crianças sabem disso?

— Eu cuidei para que fossem alfabetizadas. Elas conhecem toda a história do país. Eu posso te ensinar também. Você é inteligente, Miguel — segurou-o pelo braço. — Venha para o nosso lado, por favor.

Ele desviou a vista e se afastou dela. Aquela atitude foi o começo do fim.

— Eu preciso pensar, Tatiana. Sinceramente, você é uma completa estranha pra mim agora. Não posso resolver isso nesse momento — o tom da voz era outro, mais nervoso, vacilante. Havia até certo tremor. — Vou dar uma volta — finalizou, já partindo em direção à saída.

Tatiana fez que protestaria, contudo decidiu deixá-lo partir. Era realmente muita informação de uma só vez. Seria melhor que ficasse sozinho, mesmo que a força com que batera a porta ao sair a deixasse realmente preocupada.

Ela permaneceu na sala pela próxima hora sem se mover praticamente, apenas esperando o retorno do marido. No entanto, ele não veio. Dormiu sozinha naquela noite e com lágrimas mal secadas nos olhos. Se nem conseguia convencer o próprio marido da verdade, o que diria para uma nação inteira?

País Corrompido [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora