Prólogo

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O ambiente era demasiado propício para tricotar.

A parede estava rachada; o sofá, rasgado e desbotado; a televisão roubada fazia um chiado muito estranho; baratas e ratos cruzavam-se constantemente pelos buracos; o cheiro de cigarro a fazia tossir; não entrava luz nenhuma pela janela: estava nublado.

Por outro lado, não era tão frio do lado de dentro, havia um teto sobre sua cabeça e quatro paredes em volta. Tinha um enorme novelo de lã azul-esverdeado e suas agulhas gastas. Aquele casaco seria útil, estava ficando exatamente do jeito que ela queria, faltava tão pouco para termina-lo, aquilo a deixaria tão satisfeita...

Um nó formava-se em sua garganta, uma sensação agonizante a consumia, ela quase sentia pena de si mesma.

Mas a vitimização é algo tão repudiante... Ela não podia entregar-se, mas podia tricotar. Não podia explodir, mas podia tricotar. Não podia desistir, mas podia tricotar. Não havia o que ser feito, não podia fazer nada... Não... Podia sim. Podia tricotar.

"Tricota, tricota, tricota... Tricota os pontos, observe, arremate."

Inevitavelmente, a lágrima escorreu, a televisão chiou mais uma vez, fez-se mais um ponto no tricô, a barata passou tão perto dos seus pés gelados que quase chegou a tocá-los, um barulho de chave emperrada indicava que alguém chegava, então rapidamente a lágrima limpou-se, o casaco enfiou-se na sacola que estava quase se rasgando e a postura prepotente voltou.

Ele chegou com a camisa em mãos, a respiração rápida, o olhar selvagem e, avançou para cima dela com a mesma indelicadeza de sempre, colocou as mãos por baixo de sua blusa começou a manusear seus seios, como quem segura dois objetos, no que ela recusou. Recusou que ele a tocasse pela primeira vez.

Uma risada maquiavélica ecoou pelo minúsculo apartamento, até mesmo os bichos nojentos que por ali transitavam pararam o que faziam para se chocar. "Você não pode me recusar, você não tem nada além de mim."

"Idiota. Você nunca mais vai me ver", amaldiçoou-o e saiu com sua sacola, escutando-o gritar e desejar que ela morresse no meio do caminho. Ele nunca fora alguém maduro o suficiente para ouvir um não e ainda por cima não tinha o poder supremo das profecias, melhor era deixá-lo de lado e ter a tranquila certeza de que chegaria viva ao seu destino.

A temperatura negativa das ruas nova-iorquinas faziam os lábios e mãos dela tremerem como se estivesse pelada dentro de um congelador, a tempestade de neve dificultava sua visualização, a sensação agonizante e aquele ambiente travavam seus passos. Nunca que o caminho do apartamento até o beco fora tão longo.

Não havia uma vivalma por perto, o que fazia todo sentindo: qualquer ser humano dotado de uma mínima capacidade mental estaria em casa, tomando chocolate quente, entre cobertas, com o aquecedor ligado, assistindo um filme ou trabalhando. Por um segundo, chegou a desejar tudo isso para si mesma, mas rapidamente substituiu tal devaneio pelo casaco que tricotara. Ficara exatamente do jeito que ela queria.

Exatamente. Eu não mudaria nada, ficou perfeito. Perfeito. Ficou muito bom. Estou satisfeita.

O caminho encurtou. O tricô a distraiu. O tricô diminuiu o caminho. Finalmente o beco estava lá. Mesmo com a neve, fizera e tropeçara nas latinhas de bebida vazias de lá tantas vezes nos últimos meses que chegaria de olhos fechados. Os lábios de Otto tremiam como os dela, estavam roxos, ele dormia agitadamente e insuficientemente aquecido com uma coberta tão fina, ela queria muito falar com ele, mas não queria acordá-lo. Poderia esperar que ele despertasse por si só.

Largou a sacola para o lado e abriu sua mala amarela, arranhada e quebrada, todas as suas roupas e limitados pertences estavam lá. Dobrou a sacola, guardou-a junto às suas agulhas e o que restou da lã, deixou o casaco que tricotara fora. Do fundo, puxou alguns dólares que conseguia guardar para um caso de emergência, contou todas as notas de um, de dois, de cinco e, com sorte, de dez. Faltavam três notas de dois dólares.

Não a surpreendia que o homem que dizia ser seu amigo a roubara.

-Otto! Otto, acorda, agora!- exclamou, chacoalhando-o violentamente. O garoto pulou de susto- Onde está? Eu sei que foi você! Onde está?

-Merda, Livia! Do que está falando?

-Do meu dinheiro! Você roubou!

-Não roubei não!

-Roubou sim! Eu contei!

-Então conte de novo.

Fuzilando-o com o olhar, ela repassou as notas de uma mão para a outra, encontrando, finalmente, as três cédulas que mencionara. Suspirou em alívio.

-Estão aqui, deve ter sido a neve, foi mal.

-Suave... Pra estar estressada assim, a parada lá deu merda feia não foi? Você fez?

-Fiz.- respondeu secamente, só de lembrar o desejo que seu corpo explodisse subitamente vinha- E sim, deu merda. Uma merda colossal.

-Caramba... Vai contar ao Derek?

-Aquele imbecil... É claro que não. Ganho mais indo embora.- revirou os olhos, organizando algumas coisas na mala e fechando-a.

-Indo embora? Quando você vai?- começando a tremer ainda mais, ele afastou o cobertor e se aproximou dela. Livia sentiu o odor de cerveja barata.

-Agora. Quando mais cedo eu resolver isso, melhor.- constatou e pegou o casaco que deixara de lado- Eu fiz este casaco para você, é quentinho e tem dez dólares dentro.

-Muito obrigado...- sentiu o calor em suas mãos quando empunhou a peça e só aí notou o quanto sentia frio- Eu... Vou sentir sua falta. Se você precisar de um beco para ficar no Queens novamente... Pode sempre usar o meu.

Livia sorriu de lado e sua voz tornou-se carinhosamente mansa.

-Sabe que, se eu conseguir a minha casa algum dia, a primeira coisa que eu vou fazer vai ser vim te buscar.

-Eu sei...- apertou o ombro dela, sentia um gosto amargo na boca e uma sombra de sentimentalismo aparecia- Agora vá, cuide da sua vida.

* * *

O trem era um ambiente demasiado propício para tricotar.

Então, Livia tricotou no trem. Começou a fazer um par de meias com a lã azul mais escura que tinha. Ela não podia pensar que não fazia ideia de onde estava se metendo, que acabara de gastar 25 dólares do seu dinheiro de emergência, que estava com fome e que as coisas podiam dar tão errado quando poderiam dar em Nova Iorque. Mas ela podia tricotar um par de meias exatamente do jeito que queria e isso, por ora, bastava.

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