Acorda Amor

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27 de dezembro de 1968

"Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição..."

Caetano estava tenso, sentado na cadeira, enquanto era interrogado. Ele simplesmente tinha sido tirado de seu apartamento no meio da noite e levado para o Rio sem a mínima explicação ou motivo.

Sua vida tinha sido uma grande confusão nos últimos meses, tantas certezas e dúvidas que haviam mudado. Caetano não se encontrou mais com Chico, que até onde ele sabia, tinha voltado com Marieta.

Claro que Caetano ainda não tinha esquecido Chico, e provavelmente nunca conseguiria esquecer, mas independente disso precisava seguir com sua vida. Então ele se casou com Dedé, e estava tudo bem até aquela vaia na final paulista do III Festival Internacional da Canção. Foi horrível, tinham lhe jogado coisas, e Caetano não resistiu a um discurso inflamado contra a plateia. Ele estava com tanta raiva, tudo parecia estar se virando contra ele de repente, primeiro Chico, depois o público e agora isso. O que mais ainda poderia lhe acontecer?

Caetano foi bruscamente tirado de seus pensamentos por um dos militares que o interrogava. Alguma coisa lhe dizia que aquilo não seria só um depoimento. Fizeram as mais absurdas perguntas sobre sua vida, seu trabalho, seus amigos, entre outros. Então lhe mostraram algumas fotos da Passeata dos Cem Mil, perguntaram sobre cada um dos que estavam perto dele na manifestação e sua relação com eles.

Até que chegou em Chico, e Caetano engoliu em seco.

"Ele era meu amigo." - Doeu dizer aquelas palavras, ter que fazer aquele teatro todo doía.

"Era?"

"Tivemos um desentendimento." - Pelo menos, naquele momento, aquela triste verdade serviu para algo, Caetano pensou.

Caetano ouviu um dos soldados falar sobre Chico:

"Esse aí é melhor nem pensar em voltar para o país, ou vai do aeroporto pra prisão."

O alívio de ouvir que Chico não estava no Brasil logo foi substituído pelo pânico da possibilidade dele voltar. Isso não podia acontecer, Caetano tinha que avisá-lo, mas como? Ele nem sabia se sairia daquele lugar.

Um pensamento passou por sua cabeça. E se Chico estivesse com ele quando o prenderam? Caetano estremeceu só de imaginar.

Depois de horas de interrogatório, jogaram ele em uma solitária. Caetano se sentou no chão daquela cela escura, encolhido, segurava a cabeça nas mãos. O cabelo, antes tão grande, tinha sido raspado, tudo contra sua vontade.

Caetano se perguntou o que estava acontecendo com país, o que ele tinha feito para estar ali, mas nunca chegou a uma resposta. Nada daquilo era justo, mas o que ele mais tinha visto nos últimos dias era injustiça.

Quanto tempo ele ficaria ali? Ele sairia dali? Sentiu tanta vontade de chorar, mas nem isso ele conseguia naquele lugar.

                                          *

Conforme os dias iam passando, Caetano começava a pensar que a vida dele era aquilo, e que todo o resto tinha sido um sonho. Houve noites em que ele ouviu gritos. Caetano sentiu tanto medo. Por ele e Gil. Por Chico. Ele não queria nem pensar na possibilidade que Chico também estivesse em um lugar como aquele.

Tentou pensar nos olhos azuis de Chico, olhos que lhe ensinaram felicidade, que durante muitas noites se iluminaram para ele na escuridão. Ele realmente tinha vivido aquilo? Chico tinha lhe amado um dia?

Caetano se esforçou para lembrar da voz dele em sua cabeça.

As coisas vão melhorar, meu amor. Eu não posso te prometer quando... mas vão melhorar.

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