CHANTAGEM

• Lugares significativos, decisões importantes e torradas com geleia •

O sol se ergue devagar,abro a janela porque gosto da luz que preenche os móveis e a mim mesmo,é estranho acordar às cinco da manhã nas férias de verão? Com certeza,mas descobri que gosto de fazer isso,de sentir isso,mesmo que para o Ícaro do passado ver o sol nascer fosse coisa de mulherzinha. 

Lizzie odiava quando eu falava que as coisas tinham gênero,ela vivia me dizendo "pare de se limitar seu bobo". 

Era irritante como ela estava certa,agora não acho irritante,mas sim libertador,até colocar os sentimentos numa folha de papel parecia frágil e errado, irônico porque escrevo todos os dias desde as férias, acolhido no silêncio de uma manhã que mal começou. 

Apoio as costas na parede, sentado na cama e com o caderno virado para a janela,assim o sol pode iluminar todas as palavras.  

Julho de 2017,férias de verão 

As férias tem sido tranquilas,passo a maior parte do tempo com o molequinho e minha mãe,convenci ela a sair para alguns encontros,embora eu morra de ciúme,tenho que fazer o certo,no final das contas Marina cansou disso,mas era divertido quando ela chegava em casa com uma pizza e nós três ficávamos na sala a ouvindo falar mal dos encontros,era cada cara estranho,atrapalhado ou surtado que dava para montar um reality show,puro entretenimento. 

Mesmo achando engraçado,ainda quero que minha mãe encontre alguém que a faça feliz,que a aceite do jeito que é.
Não tem coisa melhor do que isso – alguém que veja suas merdas internas e diga: tudo bem,eu aceito todas elas porque são parte de você. 

Elizabeth fazia eu me sentir inteiro e era perfeito,mas também não posso reclamar neste aspecto,Mike é um amigo do cacete,é uma daquelas pessoas que eu posso gargalhar por horas ou chorar por horas,ele não é um mestre da articulação como a Bennet, mas está lá por mim,me escutando e me fazendo sentir melhor (e também me deixa ganhar no Call of Duty quando eu estou triste).   

Tenho conversado bastante com Marina,e é bizarro saber que a gente tem tanto em comum,ela também adora a série Arrow,vemos juntos todo domingo junto com o molequinho. 

Outra surpresa estranha e muito boa: Cyntia e Lauren voltaram a falar comigo,bem,ainda não saímos pessoalmente (acho que isso seria pedir demais por enquanto) mas troco mensagens com elas durante a semana,não sabia a dimensão da falta que eu sentia das duas – de formas diferentes mas com a mesma intensidade. 

Escrever sobre saudade me lembra de coisas que eu não sinto saudade,meu colégio por exemplo,passei por tanta coisa naqueles corredores,é um lugar significativo para mim,mas no geral não é de um jeito positivo.
É claro,foi graças a Valentin que eu conheci Mike,Lizzie e as amigas,mas foi graças àquele lugar que a minha personalidade ferrada se desenvolveu. 

Tenho pensado muito sobre isso, inclusive sobre o último ano que logo vai me atingir,as profissões que desejo escolher,é bizarro,todos os adultos dizem que ser jovem é muito fácil,mas aposto que eles não achavam fácil quando os adultos da época deles diziam a mesma coisa. 

Tenho parar de fingir que estou em dúvida sobre certas coisas,esta é a verdade,porque no fundo não estou,sei exatamente o que eu quero,só preciso da coragem para aceitar essa vontade. 
Preciso muito da coragem,principalmente porque essa vontade envolve estar ainda mais distante de Elizabeth Bennet. 

Quase escuto a voz dela me dizendo de novo "pare de se limitar garoto bobo",a lembrança me provoca um sorriso e sinto o coração apertar.

Lizzie Bennet estava certa de novo,isso é um saco,mas ela sempre quis o melhor para mim,então chegou a hora de ouvir seus conselhos de uma vez. 

I,R 

Fecho o caderno e me levanto,passo no banheiro para lavar o rosto e depois desço as escadas.
Para a minha surpresa,Marina já está acordada,usando seu habitual pijama rosa e fritando ovos na cozinha.

Ela abre um sorriso grogue ao me encarar.

– Bom dia querido. 

Devolvo o sorriso,me preparando para o que preciso dizer. 

– Ick,você tem certeza disso?

Balanço a cabeça em afirmativa,minha mãe e eu estamos conversando a mais de uma hora,disse bastante coisa que havia guardado, principalmente por vergonha. 

Ao contrário do que eu esperava,Marina não me fez sentir como se eu fosse a pior pessoa do mundo,ela me ouviu com atenção sobre as babaquices que eu cometia na Valentin, sobre meus sentimentos feios e superficiais,esboçou mais espanto do que raiva,mas seus olhos estavam tristes. 

Quando perguntei se eu a havia decepcionado,Marina disse:

 – "Fico triste por ter achado que magoar outras pessoas faria você se sentir menos quebrado,mas fico feliz e orgulhosa que lutou contra isso no final,não resolve todos os seus erros,mas é um passo na direção certa. Você está na direção certa filho."

Senti as lágrimas beirando os olhos e não aguentei,comecei a chorar enquanto era envolvido pelos braços da minha mãe. 

Depois que me acalmei,bebemos café e comemos torradas com geleia. A gente jogou conversa fora por alguns minutos e eu dei risada de suas piadas – mesmo aquelas que não eram engraçadas.

Respiro fundo e paro de comer,é agora que olho para ela e digo com todas as letras: 

– Mãe,eu não quero mais estudar na Valentin. 

Meu estômago revira,acho que é o efeito das grandes decisões. 

Marina pisca e termina de engolir o café, põe a caneca em cima da bancada e faz carinho no meu cabelo já bagunçado.

– Tudo bem querido,apoio sua decisão,mas você sabe que fazer o último ano em outro colégio não é fácil não é?

Suspiro aliviado,minha mãe disse sim.

– Não,não é. 

– Ick – ela me encara – você tem certeza disso? 

Balanço o queixo devagar,sentindo uma enorme paz tomar conta dos meus batimentos,que reduz a ansiedade e me oferece a clareza das respostas. 

O alívio é tão grande que sinto vontade de correr e gritar,finalmente libertado dessas correntes invisíveis.

– Tenho mãe,absoluta certeza. 

Abro um sorriso largo,com as palavras recentes de Marina ecoando na mente: "você está na direção certa, filho".  

Sim,eu estou mesmo,mas esta é a primeira vez que acredito de verdade.