• Quebrada,vaidosa e com a voz feita de trovões •

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Nada em seu rosto havia mudado

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Nada em seu rosto havia mudado.

Eram os mesmos cabelos loiros, a mesma pele brilhante,os lábios - apesar de fechados - pareciam abrigar um sorriso, o tipo de sorriso perspicaz que alguém esboça ao saber de algo que você não sabe.

Liana Roberts Bennet,minha mãe.

Encarei seu corpo rodeado por flores vermelhas, emoldurado por um caixão de madeira lisa. Ela estava exatamente como eu a observava em vida: solitária e autêntica.

Durante o funeral, havia apenas eu, meu pai, e duas mulheres que diziam ser amigas dela.
Ter um funeral com poucos rostos é a cara da minha mãe,não era comum que sua figura altiva cativasse alguém,no entanto, quando o fenômeno acontecia..era verdadeiro.

Alisei a manga do vestido,justo e preto,combinava com o rabo de cavalo elegante.

"Jamais deixe que o sofrimento apague sua vaidade querida" - era uma frase que eu escutava de seus lábios com frequência, enquanto mãos macias penteavam meu cabelo.

Papai chorou copiosamente, o corpo magro prostrado sob o corpo da mulher que amou, rezando baixinho para que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo, que iríamos acordar nos braços dela outra vez.

Os rostos das mulheres, embora borrados e carentes do meu julgamento,fitavam-me minuciosos.

Uma delas tinha a pele escura e usava óculos, a outra era ruiva com os cabelos cheios. Usavam roupas semelhantes as roupas de Liana, um estilo parecido, mas que despertava a essência dela ainda que em peles e formas diferentes.

É surreal pensar que aquelas pessoas foram as mais próximas da minha mãe antes do fim.

Contudo, a curiosidade deu lugar ao desdém, já que minha postura não equivalia a de uma filha, eu não esbanjava lágrimas,batimentos alterados ou pernas bambas.

Eu era uma estátua de mármore, oca, fria e solitária.

Lembro que apoiei as mãos nos ombros do senhor Bennet,na intenção de acalmá-lo, assisti seu sofrimento com respeito, ele merecia o ritual, a despedida.

O sofrimento pareceu escorrer por uma espiral quando Liana Robert foi enterrada.

O choro do meu pai se tornou agudo e descontrolado,um véu sendo jogado e pisado no chão: ela realmente estava morta e não iria abrir os olhos.

Foi como assistir a um filme melancólico e triste, eu sentia as emoções dos outros, mas não estava lá, eu estava longe, ainda vazia, petrificada.

Quando tudo acabou, levei o senhor Bennet para almoçarmos numa lanchonete,fiquei surpresa ao vê-lo comer todo o sanduíche, sem reclamar.

A cidade em que Liana morava fica a dois dias da nossa, tivemos que alugar um quarto de hotel e passar o fim de semana na cidade. A cidade que tinha o cheiro dela.

No domingo, antes da luz do sol atravessar a madrugada, eu fui sozinha ao túmulo.

É aqui que me encontro agora.

Está frio,gotas de sereno molham meu cabelo e as pernas tremem sutilmente. Todos os elementos naturais parecem prender a respiração para observar nosso encontro: o sol recém nascido, o céu desbotado e a brisa congelante.

Estamos sozinhas, autênticas e solitárias, tão parecidas, uma viva e a outra morta.

- Eu não trouxe flores para você - digo, é aqui que o passado me leva para o presente. - porque sinceramente, acho que não merece.

Silêncio, é claro.

Continuo falando:

- As pessoas costumam romantizar quem já morreu, apagar todos os defeitos e exagerar suas qualidades.. - solto uma risada amarga - é tão hipócrita entende? Porque se estivesse viva, todos seriam os maiores juízes dos seus erros..

Silêncio, rastros de brisa raspando as árvores.

- Você não tinha uma voz angelical, não era dona de um coração nobre, como suas amigas disseram nos discursos da capela..não! Você tinha uma voz imponente feito trovões, seu coração não era nobre, era quebrado e humano. Você não é apenas o amor da vida de alguém, como é o caso do senhor Bennet, você é uma pessoa merda! - sinto a voz embargar - uma pessoa cheia de defeitos, complicada, difícil e...maravilhosa.

Altero minhas palavras, porque não fazem sentido agora:

- Você era, uma pessoa difícil e maravilhosa.

Cerro os punhos, enfiando as unhas na palma das mãos.

- Não pense que eu perdoei você porque está morta - afirmo, sentindo o coração latejar enquanto tem uma faca girada nele - a morte não te livra da dor que causou a nós.

- Você poderia ter sido livre e ter agido certo, não era tão difícil..pedir o divórcio talvez? Iria poder viver a sua vida, passar quinze dias comigo e depois ter seus preciosos quinze dias livres de mim...existiam tantas opções - não tenho força para controlar a lágrima que escapa - por que você escolheu nos esfaquear no peito e não nos dar pequenas agulhadas?

- Entendo que talvez não quisesse ser mãe, ter uma vida simples e regrada, entendo mas..mas eu já existia! Precisava de você, não de uma mãe perfeita que cozinhasse e tricotasse, apenas de você: quebrada,vaidosa e com a voz feita de trovões.

Sinto o ar me asfixiar por dentro, as palavras turvas e quentes derretendo as brechas de uma estátua.

- Eu só..queria que não tivesse fugido mãe! Por que todas as pessoas fogem?!

Apoio os joelhos no chão, dói por causa dos pedregulhos, mas permaneço assim.

- Se estiver ouvindo, de qualquer lugar, saiba que eu não perdoo você. Saiba que eu.. - começo a chorar, sentir pontadas no peito - que eu não te acho incrível e perfeita, e saiba que eu...eu te amo, te amo perdidamente, apesar de você ser uma escrota. Eu te amo.

Meu choro fica mais alto, o sol continua se erguendo.

- Eu te amo, eu te odeio e eu te amo,ouviu bem?

Não, não há nada além de um silêncio
angustiado.

- Ótimo, certo.. - tento enxugar as lágrimas, mas elas continuam caindo.

Todas as lápides e histórias são cobertas pelo sol,quente e revigorante,a deixa para o canto breve dos pássaros..

..e também o passado,esmagador e delirante que habita este lugar.

- Está vendo mãe? - olho para o céu, procurando por ela em algum ponto dele - o sol já nasceu.

Sinto a brisa atravessar meus poros, serena e fria,me aquecendo.

Na lápide, minha mãe escolheu um de seus versos favoritos, um verso que recitava para mim quase todos os dias.

Consigo ouvir seu sussurro enquanto é de manhã, talvez estes raios de sol sejam os cabelos dela acariciando minhas bochechas.

"Aguente firme querida, é um mundo muito louco."

Solto uma risada angustiada e úmida, alta e clara.

Eu sei mamãe, eu sei.

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