Prólogo

62 16 100
                                    

O destino me pregou muitas peças, mas apesar dos tombos venci todos os obstáculos, superei meus próprios limites e confesso que não conhecia o tamanho da minha força, até estar à frente da linha de batalha. 

Nasci sem poder enxergar as cores do mundo, e com isso, desde muito cedo precisei enfrentar grandes batalhas. Mas as dificuldades da vida me ensinaram a não me ajoelhar diante dos problemas por piores que eles fossem, pois sempre haverá uma solução, assim como também aprendi que não existe felicidade plena, mas momentos felizes ocasionados por minhas escolhas.

 Olhando para o meu presente, jamais imaginaria que fosse tão longe, mas arrisquei, lutei com todas as minhas forças e foi assim que aprendi o caminho para a satisfação pessoal e estou aqui agora para contar um pedacinho de minha história...

Eu me chamo Ana Clara, nome escolhido com muito amor e carinho por minha mãe, Tereza, que cumpriu bravamente o seu papel de me gerar em seu ventre e depois encerrou sua missão se tornando meu anjo protetor lá de cima, aonde hoje é sua morada. Nasci e cresci em Ourinhos, interior de São Paulo, uma cidade pequena e muito acolhedora que faz fronteira com o estado do Paraná.

Nossa casa ficava no final de uma rua que fazia fundos com o rio Paranapanema em uma pequena chácara que foi herança do meu pai que passou para o nome do meu irmão quando decidiu ir embora do país e nos deixar aos cuidados de minha avó materna. Minha saudosa nona Maria das Dores, uma italiana de muita garra.

Não entrarei no mérito de religiões, até porque hoje, por questões pessoais, não sigo praticamente nenhuma, mas, acho importante dizer que ter tido uma base forte me fez aprender a ter empatia e respeito ao próximo, por mais que nem sempre recebesse essa consideração em resposta.

Meu irmão participava do ministério de música, e minha avó, que sempre foi uma pessoa muito religiosa, durante anos permaneceu como coordenadora da Pastoral da criança, o que fez dela uma pessoa muito conhecida na comunidade, e requisitada a participar de tudo o que envolvia as atividades da paróquia. E com isso, minha casa vivia cheia de crianças. Principalmente em dias de pesagem da pastoral que virava uma verdadeira festa onde vovó levantava muito cedo para preparar os bolos, pães e doces para distribuir entre elas.

Como podem ver, eu tive uma infância feliz, fui amada, protegida e cuidada pelas pessoas a quem o pai lá de cima me confiou. Minha nona foi meu tudo na vida, sempre elétrica nunca foi de ficar parada, quando não estava lidando com as atividades da igreja, estava cuidando dos afazeres da chácara. Mas isso foi antes de sofrer aquele "Derrame cerebral" que a deixou na cama por dois longos anos até se repetir e infelizmente a levar de nós. 

Há quem diga que ela desistiu de viver devido às sequelas, e não seria para menos porque sempre foi uma pessoa muito ativa e ter que ficar acamada a deixou muito depressiva. A doença paralisou um lado de seu corpo e abalou a fala, o que dificultava e muito minha comunicação com ela. Penso eu, que ficar ali praticamente vegetando foi o que a fez se abater-se até que se desse por vencida.

Dizer adeus nunca é fácil, digo por mim, que sofria parceladamente enquanto me despedia um pouquinho a cada dia durante todo aquele tempo em que ela padeceu naquela cama entre idas e vindas do hospital, consciente, porém presa em seu próprio corpo, o que me faz pensar que é o pior dos castigos que um ser humano pode receber na vida. Vó Maria, era nosso alicerce, nossa direção e a sensação desesperadora de tocar em sua mão pela última vez e não sentir seu aperto em resposta, chamar, insistir, implorar e nada acontecer, tocar sua pele fria e sem expressão era como se o chão sumisse embaixo de meus próprios pés...

Meu irmão recebeu muito apoio dos vizinhos e amigos enquanto tentava se manter forte, embora o tenha escutado chorando no quarto algumas vezes. Mal sabia ele, que ao ouvi-lo desabar, eu também chorava me sentindo culpada por não conseguir aliviar aquela dor da responsabilidade que praticamente caiu sobre si, o forçando a permanecer em pé por nós dois. Ele me dizia que todos temos um tempo limite de permanência aqui na terra, e que por isso, não deveria carregar mágoas, nem ressentimentos da vida.

Sei que o fim chega para todos, mas ela se foi muito cedo, eu ainda precisava de sua proteção, e sua presença feminina me faria muita falta. Eu enxergava apenas borrões e imagens desfocadas, o que tornava as coisas mais difíceis e agora sem ela, seria bem mais complicado porque sobrecarregaria meu irmão que assumiu todas as responsabilidades sozinho tendo que segurar o peso de nosso futuro em suas costas.

Michael, apesar da pouca idade, sempre honrou o posto de homem da casa. Era dedicado em seu trabalho e muito focado em seus objetivos, o que ajudou, de certa forma, a encontrar forças para suportar as dificuldades e tocar a vida comigo. Eu auxiliava no que podia, mas não era o suficiente, às vezes me sentia um peso extra por não conseguir fazer mais, afinal, minhas limitações ocupavam muito de seu tempo, não permitindo que ele vivesse como um jovem normal, que saía, namorava e curtia a vida.

Na época em que minha avó se foi, ele estava terminando a faculdade, então trabalhava durante o dia e estudava a noite, e apesar de nossa rede de apoio formada por amigos, sua vida que já era corrida, agora ficou ainda mais. Durante o dia trabalhava e a noite estudava, não sobrando muito tempo livre. Meu pai, que se mudou para o exterior em meu primeiro ano de vida, não deixava que passássemos dificuldades financeiras, mas por me culpar pela perda de sua amada, nunca retornou para uma visita. Sempre falava com Michael ao telefone, mas era só isso.

Praticamente fui adotada pela vizinhança que me viu nascer e crescer ali naquela rua. Às vezes até me esquecia de que era uma adolescente com necessidades especiais porque me tratavam com tanta naturalidade que chegamos a criar nossa própria forma de comunicação, já que meus amigos eram os meus olhos para as novidades do mundo. Todo fim de tarde a turma da calçada se reunia para jogar conversa fora. 

A rua se enchia de jovens, as crianças brincavam de roda, alguns jogavam bola, outros ouviam música e no final acabávamos contando histórias sentados no banquinho improvisado com pedras a frente da minha casa. Eu não podia participar de todas as brincadeiras, mas isso não me impedia de me divertir porque sempre me incluíam em algo que pudesse participar sem risco de cair ou me machucar. Com o tempo fomos crescendo e as brincadeiras de criança deram espaço a coisas de adolescentes em tempos de descobertas que sem dúvidas foi a melhor época, mas como a mudança era inevitável, agora isso tudo acabaria. Pelo menos para mim.

Eles continuariam lá por muito tempo ainda, e com certeza se lembrariam de nossa amizade quando tocasse a nossa música favorita ou quando passassem por lugares onde passamos juntos. Os mesmos lugares que tinham que descrever com detalhes para que eu pudesse entender e confesso que às vezes me questionava se suas descrições realmente eram reais ou uma maneira de tornar minha vida um pouco mais leve e colorida. Quem nunca vivenciou esse tipo de sentimento de cumplicidade, com toda a certeza do mundo, passou pela vida, mas não viveu.

Aqueles eram meus amigos que de certa forma levaria comigo por onde quer que fosse, e apesar de nunca ter visto seus rostos, em meu pensamento o lugarzinho deles estaria sempre guardado e protegido com o amor e a saudade de um tempo em que fomos verdadeiramente felizes.

Pela Força do Destino  - A Magia do OlharOnde histórias criam vida. Descubra agora