1. Estamos bem agora!

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Quando chegamos à casa, a primeira coisa que minha mãe fez foi jogar seus saltos altos e gargalhar para o nada, do nada.

Franzi meu cenho e quando ia passar por ela, a mulher segurou meus braços e me rodopiou, igual costumava fazer quando eu era criança, a olhei, sem desmanchar a ruga formada em minha testa e ela fez careta.

-Deixa de ser chata!- riu e então eu soube que ela estava chapada.

Repassei os momentos daquele dia em minha mente e não consegui achar um em que ela pudesse ter escapado para acender um charro.

-Eu estou cansada mãe!- falei baixo, me afastando da mulher e a mesma revirou seus olhos correndo descalça até a cozinha.

Quando ela foi para o banheiro. Sim, com certeza tinha sido cinco minutos antes da cerimónia terminar, quando ela pediu licença para os amigos do Jerry, alegando que ia retocar sua maquilhagem, que estava borrada de tantas lágrimas forçadas.

A vi voltar com uma taça de vinho numa mão e a garrafa na outra.

-Vamos brindar!- disse ao me entregar a taça e eu a recebi.

Não pretendia beber, só a recebi porque se não o fizesse, ela não me deixaria em paz.

-Ao Jerry!- ela sorriu e eu juro que nunca a tinha visto tão feliz.

-Ao Jerry!- repeti não tão animada quanto ela e ergui a taça no ar, e em seguida fingi que bebia o vinho, enquanto ela entornava a garrafa em sua garganta.- Amanhã tenho escola, boa noite mãe!- sorri sem mostrar meus dentes e minha mãe segurou meu rosto para beijar minha testa.

Senti seu amor ser transferido para mim, naquele selinho demorado e meu corpo que antes estava frio, aqueceu um pouco.

-Óptima noite amor!- disse e eu sorri um pouco antes de lhe dar as costas para subir as escadas.

Parei no meio dos degraus e olhei para baixo, minha mãe ria e dançava descalça pela sala, pisando o mesmo chão no qual um dia ela já esteve deitada, sendo pisada.

Sorri um pouco e subi até meu quarto. Minha mãe finalmente estava livre.

Depois do banho me ajoelhei perto da cama e agradeci a Deus por isso, pois sabia que ela não o faria.

Eu e ela esperamos muito por aquele dia, e esse foi o motivo de nenhuma de nós ter pego no telefone quando percebemos, no meio do jantar que Jerry estava a ter um ataque cardíaco.

Eu até pensei em ligar para o hospital mas minha mãe, que tinha se assustado de início com os gemidos estrangulados do homem velho, olhou em meus olhos e fez que não com a cabeça.

E eu obedeci pois tinha percebido que aquela era sua chance.

Depois que percebemos que ele estava morto, minha mãe deitou seu corpo flácido no chão e fingiu que tentava reanimá-lo com uma massagem e eu corri para o telefone fingindo estar assustada.

Me deitei na cama e fechei os olhos, sem desligar as luzes. Eu tinha medo do escuro desde criança.

Meu pai costumava me trancar em um armário minúsculo da casa em que moravamos, durante horas.
Nos primeiros dias eu chorava, esmurava a porta, implorava para ele me tirar dali, mas de nada adiantava.

Quando ele dormia, minha mãe ia até a porta, me dava água e me abraçava até eu adormecer, depois me deixava lá e voltava para deitar ao lado do monstro com quem tinha se casado.

Eh, minha mãe não tinha sorte com homens, nem de longe.

Suspirei, depois de quase três horas sem consguir pregar o olho.

Era sempre assim, eu me sentia cansada, exausta, mas não conseguia dormir, mesmo que meus olhos implorassem para descansar, eu simplesmente não conseguia desligar minha mente.

Desci as escadas e vi minha mãe deitada no sofá, assistindo um filme qualquer na tv de 164 polegadas, presa à parede.

-Missy? Está sem sono?- a mulher negra me olhou e eu suspirei, me sentando do seu lado e encostando a cabeça em seu ombro.

-O pior é que estou com muito sono!- murmurei, de olhos fechados, deixando seu cheiro natural invadir minhas narinas.

Jerry não deixava minha mãe usar perfume e ela não tinha tido tempo de comprar um, agora que estava livre, mas não precisava, seu cheito era bom, mesmo misturado com o cheiro de vinho.

Ela esticou sua mão e fez carinho em meus cabelos crespos.

-Mãe!- chamei por ela e em resposta a mulher murmurou um "hum?"- Como acha que o Malcom está?- perguntei mais e senti, por instantes, seu corpo todo estremecer.

-Espero que morto!- disse sincera e eu suspirei.

Minha mãe nunca tentou esconder o odio que sentia por meu pai, mesmo que ele fosse meu pai, e eu não a culpava.

Quem olha para Gilia Duncan, e a vê com a pele mal cuidada e o corpo todo marcado por hematomas não imagina que aquela mulher seja filha de um dos melhores advogados do país. Minha mãe teve a melhor infância que alguém pode querer, tendo sempre do bom e do melhor, mas no que tocava a homens, ela nunca teve sorte, na verdade, ela tinha o pior azar do mundo.

Malcom McKenzie, foi o primeiro homem por quem ela se apaixonou, era o capitão do time de LaCrosse, loiro, de olhos azuis e sorriso encantador, foi o primeiro namorado dela, no ensino médio. Ele tirou a virgindade dela e no último ano, ela engravidou pela primeira vez.

Gilia quase não sobreviveu ao primeiro aborto e ao segundo muito menos, na terceira gravidez, a minha gravidez, ela decidiu que não dava mais e contou para meus avós que estava grávida.

Meu pai ficou furioso quando os pais dele o obrigaram a desistir da carreira de jogador para arranjar um emprego e cuidar de mim e da minha mãe.

Quando eu tinha alguns meses, nos mudamos, para a casa onde eu cresci e meu pai continuou trabalhando para nos sustentar, mas só isso pois a parte de cuidar ele não fazia direito.

-Eu também!- sussurei me aconchegando em seu peito e a mulher me abraçou.

-Durma meu amor, estamos bem agora!- eu sabia que ela se referia ao facto de o Jerry ter morrido. E ela tinha razão, ninguém mais bateria nela, nem em mim, estávamos bem, estávamos a salvo.

-Estamos bem agora!

My faultOnde histórias criam vida. Descubra agora