Capítulo 26

181 31 5
                                    

• Fernando Zorzanello •

Dormi apenas por duas horas em um hotel mediano depois de decidir a argumentação e os caminhos a seguir durante ela. Não quis me hospedar na casa do falecido e os hotéis mais confortáveis estavam todos lotados. A cidade do interior era muito utilizada por turistas que buscavam paz e natureza, o que era irônico, porque o meu motivo de estar ali era o oposto.

Tínhamos alguns caminhos possíveis para seguir. A nossa preferência era convencer a cuidadora da renúncia completa do testamento, mas também nos planejamos para caso fosse necessário ceder em algum momento, em diversos níveis, para evitar um trâmite demorado. Meus clientes estavam de acordo com todas as possíveis soluções apresentadas.

A sala de reuniões alugada por Júlio contava com uma mesa retangular de oito lugares e o mais importante: isolamento acústico. A decoração me causava fobia: uma TV de cinquenta polegadas em uma parede multicolorida que poderia ser capaz de me cegar. Muita cor, muita saturação... eu odiava. Fiquei de costas para a parede da porta de entrada estravagante, ao lado de Natália, para a minha visão não ser perturbada.

Thomas se isolava no canto esquerdo, encostado na parede, enquanto olhava para o piso laminado. Suas mãos estavam parcialmente dentro dos bolsos da sua calça jeans rasgada, uma grossa pulseira de ouro e brilhantes continuou à mostra em seu pulso. O topete de mauricinho não estava fixo, caía em sua testa.

Aline sempre estava maquiada nas poucas vezes em que a vi, mas para a reunião, escolheu deixar as olheiras visíveis. Acreditava que fosse pelo luto, ninguém entristecido com a morte de um ente querido cogitaria esconder as olheiras com maquiagem. Júlio se manteve ereto ao lado da irmã, bem vestido em um terno preto, mas com o semblante abatido e a barba por fazer.

A porta ficou entreaberta enquanto aguardávamos. Um barulho estridente de sapatos de salto ecoou no corredor. Me mantive de costas aguardando que nossos convidados entrassem. Observei as expressões dos meus clientes ao olharem em direção à porta e foram muito distintas. Aline e Júlio pareciam ter visto o seu pior inimigo. Thomas, antes distraído, parecia ter ficado apenas surpreso.

Esperei que a sala se preenchesse. A primeira figura que passou por mim foi de uma mulher madura, vestida em roupas sociais. Aquela deveria ser a advogada, pois justificava o olhar odioso que meus clientes lhe direcionaram. Encarei seu olhar frio por um breve momento até sentir um cheiro familiar.

Fechei os olhos, buscando em minha memória olfativa aquela combinação de notas. Não era qualquer combinação. Bingo. Em segundos, identifiquei o perfume Maitê. Muito bom. A edição foi limitada, portanto nunca mais havia sentido aquele cheiro. Imaginava que ninguém mais tivesse um frasco além de mim, que guardei três deles no fundo do meu closet.

Abri os olhos, curioso para saber quem era a mulher de tanto bom gosto. O cheiro se difundia de maneira única, melhor do que eu me lembrava. Um homem alto de roupas sociais caminhava de mãos dadas com quem deveria ser a cuidadora, vestida em um tubinho preto até os joelhos. O cabelo tampava a lateral da sua face e eu apenas conseguia ver a ponta do seu nariz. O casal circulou a mesa e tomei fôlego, me preparando para me apresentar.

Engasguei-me com o meu próprio ar assim que a mulher ficou de frente para mim, do outro lado daquela mesa.

Mesmo de cabeça baixa, parecia absurdamente com a minha fujona. Passei a sentir as batidas do meu coração nos tímpanos, de tão acelerado. Pisquei, porque não poderia ser possível, mas ela continuava na minha frente.

Ela ergueu a cabeça, e então minha mente se transformou em mingau.

Aqueles olhos. Eu me lembrava deles.

A parte que me faltavaOnde histórias criam vida. Descubra agora