Capítulo 19 - Fora de risco

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A maior parte do percurso até o hospital não foi registrada por meu cérebro. Lembro apenas de William acelerar mais a picape quando passamos pelas proximidades do centro de Robson. Depois tudo se tornou um borrão de imagens.

_ Vai ficar tudo bem. _ Inúmeras vezes a frase foi sussurrada por uma voz tensa e distante.

Quando chegamos, tirou-me da caminhonete em seus braços. Um enfermeiro surgiu com uma cadeira e me conduziu pelo corredor do setor de emergência do hospital. William acompanhou de perto, até que foi impedido de adentrar pela última porta dupla.

_ Vai ficar tudo bem. _ Balbuciou de longe, aprisionando-me em um olhar encorajador, porém preocupado...

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_ A senhorita teve muita sorte por ser encontrada logo. Podia ter morrido de hipotermia ou atacada por coiotes. A região montanhosa de Robson está cheia deles. Vi em sua ficha que não é daqui. É brasileira, certo?

Afirmo com um aceno de cabeça para o médico que me atendeu há dois dias.

_ Para o futuro, procure um guia quando quiser explorar a montanha. A rapidez do senhor Belanger no salvamento fez grande diferença.

_ Tomarei mais cuidado. _ Desvio o olhar

Mal sabe o médico que eu estava fugindo justamente daquele que me salvou.

_ Os exames não acusaram nenhum trauma na cabeça. O senhor Belanger estava preocupado porque quando a encontrou a senhorita estava com a testa sangrando e um pouco desorientada.

Respiro fundo aliviada.

_ E onde ele está? _ Olho em direção à porta do quarto de enfermaria.

_ Lá fora. Disse que só entraria depois de nossa conversa. É um pouco antissocial, mas é boa gente, não é?_ O médico sonda.

_ É sim, doutor. William é uma boa pessoa. Só é reservado. Se não fosse por ele, eu teria morrido.

_ Foi o que imaginei. Não arredou os pés da sala de espera desde que a trouxe. _ O médico concorda.

Lanço um olhar ansioso para a porta. De repente sinto muita vontade de revê-lo. O médico parece notar.

_ Certo. Vou mandá-lo entrar enquanto preparo o registro de sua alta. _ Vai saindo.

_ Obrigada, doutor.

_ Por nada, menina. Se sentir algo estranho como dor de cabeça, tonteira ou sensação de desmaio, volte imediatamente para fazermos novos exames.

_ Pode deixar.

Alguns minutos após o médico sair, William entra no quarto. Aproxima-se lentamente do leito.

Sinto uma sensação estranha como se pequenos pontos em brasa se acendessem dentro mim.

Meus olhos percorrem do familiar par de coturnos, pelos jeans surrados até a camisa cinza com estampa de alguma banda pouco conhecida que não conseguem esconder os músculos definidos das pernas, braços e abdômen.
Sei disso, porque andei bisbilhotando algumas vezes enquanto treinava na neve.

Por último, nossos olhos se encontram. Está usando um boné do Toronto Raptors e mantém as mãos nos bolsos da calça. A postura apreensiva.

_ Finalmente recebeu alta. _ Quebra o silêncio. _ Está se sentindo melhor?

Aceno a cabeça.

_ Acredito que queira permanecer na cidade, então me adiantei e reservei um quarto em um hotel próximo. Sua mala, trarei depois. Verei o que deu para salvar.

Franzo a testa.

_ Ainda não cumpri minha missão.

William ergue as sobrancelhas.

_ Tenho que encontrar a casa de meu tio e organizar as coisas dele. Por isso vim para cá. Foi um pedido de meu pai. Se não quiser que fique mais em sua casa, vou entender.

Encara-me surpreso.

_ Achei que não quisesse voltar, afinal tudo isso foi porque fugiu de lá. _ Sinaliza com o queixo.

_ Desculpe. _ Abaixo as pálpebras. _ Acabei me deixando influenciar pelos comentários maldosos que ouvi.

_ Não tem que se desculpar. Também não ajudei muito. _ Ergue um lado dos lábios. _ Faz muito tempo que vivo assim. Perdi o jeito com as pessoas.

_ Ainda assim, deveria ter pensado melhor. Fui impulsiva e isso quase custou minha vida.

William concorda.

_ Já que irá retornar comigo, vou cancelar a reserva. Enquanto isso, vá se arrumando. Precisa de ajuda?

Tenho impressão de que algo se acendeu em seu rosto. Mas pode ser só uma dedução.

_ Will... _ Seguro as pontas de seus dedos antes que saia.

Ele paralisa. O olhos fixos no toque de minhas mãos.

_ Como me chamou?

_ Will. _ Minha voz sai vacilante. _ Desculpe se não gosta que te chame assim. _ Solto os dedos apressada.

_ Não. Não é isso. É só que, somente uma pessoa me chamava assim. Alguém muito importante que não está mais aqui.

_ Não foi minha intenção trazer à tona lembranças ruins.

Ele repuxa um lado da boca. Dessa vez foi quase um sorriso.

_ Não foi uma lembrança ruim. Meu irmão caçula me chamava assim. _ William olha para o chão.

_ E onde ele está?

Will ergue a cabeça. Os olhos castanhos esverdeados anuviados.

_ Está morto. _ Não me encara.

Toco novamente seus dedos.

_ Sinto muito.

Will esquiva a mão.

_ Não sinta. Não quero ser consolado.

Vira de costas e caminha para a porta.

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Assino alguns documentos na recepção e sigo pelo corredor do hospital. Will carrega a mochila que providenciou com alguns objetos pessoais para os dois dias em que estive em observação. A outra mão ampara minhas costas de forma protetora.

Quando alcançamos o saguão do hospital alguém pronuncia meu sobrenome, ou melhor o sobrenome de meu tio, Tremblay. Ergo a cabeça e observo um senhor de baixa estatura nos observando com olhos julgadores. Se não me engano é o mesmo que me atendeu em um comércio no centro de Robson no dia em que cheguei. Harold é seu nome.

Antes que consiga o cumprimentar, se afasta apressado com expressão de nojo e arrastando consigo a senhora que o acompanha.

Sinto-me confusa. Acompanho o homem com o olhar até que me deparo com Will me observando.

_ Sabe porque isso aconteceu, não é?

_ Você o conhece?

Will afirma com um arranhar de garganta.

_ Certas coisas não mudam nunca. _ Will segura minha mão. _ Vamos logo embora daqui...

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