Capítulo 16 - Isolados - Parte 2

223 50 10
                                    

Nevou mais à tarde, impossibilitando qualquer atividade ao ar livre. O acesso à montanha continua interditado e tentar chegar na casa de meu tio, que é mais acima, seria loucura com a nevasca. Então, sigo em exílio forçado na cabana de William, um homem prestativo e educado até certo ponto, pois revela pouquíssimo de si e mantém um ar de mistério que me deixa preocupada...

Na manhã do meu terceiro dia no Canadá e o segundo nessa situação inusitada, encontro um bilhete de William embaixo de uma tigela de mingau de aveia na mesa da cozinha.

"Se precisar de algo, estou na oficina."

W.

A caligrafia dele é legível e correta.

Sento em uma banqueta de madeira e saboreio o mingau ainda morno com o bilhete na mão.

William é muito intrigante. Me assustou de verdade quando o vi pela primeira vez. Andando pela neve sem camisa com um cão feroz. Afinal, quem consegue viver isolado nas montanhas, em uma cabana com poucos recursos, tendo como única companhia um Rottweiller?

Sorrio com a lembrança da cena de ontem de manhã. Ele se exercitando em frente a casa com Brutus. E de ontem a tarde. Enquanto fiquei revisando meus textos, ele saiu para dar um mergulho nas águas quase congeladas de um lago próximo.

_ Que figura...

No entanto, com esses dias de convívio notei que é um homem culto e educado. Também não aparenta ter mais de trinta anos. Então, como consegue viver sem o básico como telefone e internet?

Termino de comer. Lavo a tigela e o talher que usei. Seco as mãos e sigo pelo corredor atraída por sons abafados de marteladas em alguma parte da casa.

Passo pela despensa, novamente organizada depois da bagunça, causada pelo guaxinim, e saio pela porta traseira da cabana. Uma corrente de vento gelado me atinge em cheio. Fecho o casaco e sigo para uma escada lateral à cabana que leva ao subsolo.

Pelo vidro no alto da porta noto que há iluminação lá dentro e alguém trabalhando também. Giro a maçaneta e a porta abre. Imediatamente nossos olhos se encontram, como se ele já me esperasse.

O ambiente tem cheiro de madeira recém cortada misturada com o aroma cítrico que já senti várias vezes em William.

Ele usa camisa de manga xadrez em tons vermelho e preto, jeans rasgado e os coturnos de costume. Tem um óculos de proteção preso à testa e luvas nas mãos.

_ Acordou cedo. _ Volta a se concentrar no que fazia com um pedaço de madeira e uma lixa.

_ Bom dia. _ Sacudo os flocos de neve que grudaram em meu casaco e na calça justa de veludo.

_ Já tomou café da manhã?

_ Sim. E encontrei também seu bilhete. _ Aproximo-me da área de trabalho e sento em um balcão de madeira.

Ele acena afirmativamente e caminha até uma cadeira de balanço recém montada. Ensaia a colocação da peça de madeira no encosto.

_ Então, é isso que você faz? _ Observo suas mãos habilidosas.

Ele ergue a cabeça em minha direção sem responder.

_ Você é carpinteiro?

William une as sobrancelhas e repuxa um lado da boca com expressão modesta. Seus olhos circulam a oficina com peças de madeira espalhadas, além de uma serra elétrica e outras ferramentas.

_ Na verdade, isso é mais um hobbie que ganhou grande proporção. Sou engenheiro.

Ergo as sobrancelhas surpresas.

Pulo da bancada e me aproximo dele e do móvel. Analiso minuciosamente a peça que está montando. Deslizo a mão pela madeira de qualidade bem polida.

_ Mas você é bom nisso. Devia investir.

William abaixa a cabeça parecendo desconfortável com o elogio.

_ Só por curiosidade, foi você quem fez a cama do quarto em que estou? Notei o mesmo estilo aqui.

Ele comprime os lábios um pouco ressecados pelo frio.

_ Foi sim. A cama, o baú, a penteadeira e grande parte dos móveis da casa.

_ Uau.

William acena a cabeça em negativa, como se tivesse se arrependido logo depois de ter falado. Tira os óculos da testa e começa a organizar as ferramentas em uma maleta.

_ Desculpe insistir, mas sinceramente, deveria divulgar seu trabalho. Garanto que as pessoas da cidade vão comprar quando ver.

William para o que está fazendo. Fecha a caixa e se aproxima de mim devagar. Seus olhos estão mais verdes e a expressão dura. Me surpreendo com a mudança repentina de humor. Ele lembra um predador pronto para o ataque.

Afasto-me para trás até encostar na bancada. Ele apoia um mão em cada lado de meu corpo pequeno comparado a ele.

_ Ninguém nesse lixo de cidade está interessado no que faço. A minha simples existência já é um estorvo para essa gente. Não preciso que comprem nada meu. _ William solta as palavras com lábios cerrados como se fossem veneno.

Passo os minutos seguintes paralisada. Olhos arregalados, boca aberta e coração acelerado.

_ Por quê? _ Ainda que em um sussurro, me atrevo a perguntar.

Os olhos de William se desviam dos meus e se concentram em minha boca. Seus rosto está rosado e a respiração mais pesada.

Passamos mais alguns minutos assim. Sinto-me hipnotizada pelos olhos castanhos esverdeados e pela dor misteriosa que refletem. Ele me mantém imóvel e o perigo que paira entre nós ao mesmo tempo que me assusta, me fascina.

_ Porque ninguém nessa cidade compraria nada de uma fera.

**************************************

Uma cabana na montanha Onde histórias criam vida. Descubra agora