34 - Um só até que o inferno nos reclame

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O som suave do lápis arranhando o papel é quase hipnotizante. A luz do estúdio cai sobre a mesa de desenho, destacando cada detalhe que adiciono ao esboço. Estou concentrado, os traços rápidos e precisos formam um novo projeto que vem maturando há dias na minha cabeça. Uma música agitada toca no rádio em volume baixo, mas, ainda assim, consigo ouvir o clique discreto da câmera de Ava.

Minha assistente está na porta, posicionada para pegar alguns ângulos meus enquanto trabalho. Isso faz parte da ideia dela de atrair mais clientes ao mostrar o 'processo criativo' nas redes sociais do estúdio. Mas, pelo número de fotos que já tirou de mim, está claro que a ideia dela de 'processo criativo' envolve mais a minha pessoa do que os desenhos.

Clique. Mais uma foto.

Solto uma risada baixa e levanto os olhos da mesa, encarando-a.

— Ava, não sei se você percebeu, mas são os desenhos que você deveria estar fotografando, não eu.

Ela abaixa a câmera, mas mantém aquele sorriso travesso no rosto.

— Claro. Porque, obviamente, não é você que atrai as melhores clientes.

Pisca, apontando a lente na minha direção de novo, e dispara mais um clique antes que eu possa retrucar.

Dou de ombros, largando o lápis e me reclinando na cadeira.

— Bom saber que meu talento como modelo é maior que como tatuador. Talvez eu devesse cobrar por isso também.

Em resposta, ri, um som leve que preenche o estúdio.

— Se fizer isso, vou precisar de um aumento. Vou querer comissão por ser sua cafetina.

— Não fique gananciosa, Ava — retruco, com um sorriso de canto.

Observo-a se afastar, rindo, enquanto mexe na câmera, provavelmente ajustando as fotos para as redes sociais, com aquela expressão concentrada. Estou prestes a voltar ao trabalho quando meu telefone vibra sobre a mesa, quebrando o silêncio momentâneo.

Giulia.

"Sabe, se você passasse menos tempo posando para a câmera, talvez terminasse o que começou aqui em casa." (19:40:02)

Um sorriso lento se formou no meu rosto, e já comecei a arquitetar a resposta.

"Se você quiser que eu termine o que comecei, vai ter que pedir com mais jeitinho." (19:41:45)

Enquanto a mensagem seguia, Ava passou ao meu lado, organizando as tintas e os equipamentos nas prateleiras. Ela notou o sorriso malicioso que tentei disfarçar, e me lançou um olhar de relance, divertido, aproveitando a chance de provocar.

— Quem diria que o cara sério sabe sorrir assim, hein?

Fixo os olhos nela por um instante, deixando o tom rouco e descontraído escapar:

— Falou a pessoa que manda fotos minhas para a Giulia.

Ergueu as mãos em um gesto de rendição, rindo.

— Não nego. Ela te faz sorrir, então acho que estou fazendo um favor pra todo mundo. Gosto de ver meu chefe de bom humor.

Estou prestes a retrucar quando o celular vibra novamente.

"Isso não vai acontecer, eu não vou pedir. Eu nunca pediria." (19:45:49)

Rio baixo, aquela resposta me acendendo por dentro. Giulia sempre soube exatamente como me desafiar, como mexer com algo profundo em mim. Sem hesitar, meus dedos voaram pelo teclado.

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