ㅤㅤㅤO silêncio que pesava na cozinha já beirava um nível constrangedor, e as duas eram esmagadas por um desconforto trazido pelas Pessoas de Sombra que acompanhavam Alice.
ㅤㅤㅤAmy estava de costas para ela. Com as mãos apoiadas na bancada, os dedos apertavam as bordas de pedra do balcão e a cabeça estava baixa, fitando a torradeira diante de si. Alice estava sentada na cadeira com os joelhos contra o peito. Usava um blusão colorido que mais parecia um vestido e a caneca quente de achocolatado esquentava suas mãos, mas o calor não trazia conforto algum.
ㅤㅤㅤOs vultos ao redor se moviam de forma sutil, como se tivessem medo de serem olhados diretamente, mas carregavam o ar com suas respirações asmáticas. Alice se perguntava em que momento se distraiu o suficiente para que se acumulassem tantos ali, e tentava descobrir se Amy também conseguia senti-los, mas a garota continuava imóvel, alheia ao rosto que se apoiava em seus ombros
ㅤㅤㅤAnalisava atentamente os cabelos pintados de castanho, e percebeu que ainda era possível ver algumas mechas avermelhadas onde a tinta não ficou tempo suficiente. Como se falassem que a antiga Amy ainda estava ali em algum canto. O barulho alto da torradeira assustou ambas, tirando-as de seus devaneios pessoais. Balançando a cabeça, a garota que estava em pé pegou as torradas e as serviu em um prato. Amy hesitou por alguns segundos, antes de se virar e largar o prato na mesa.
ㅤㅤㅤ— Por que nos afastamos? — Alice perguntou com a voz rouca, e um pigarro preso na garganta.
ㅤㅤㅤA outra a encarou com os olhos escuros, livres das lentes de contato coloridas de azul, e comprimiu os lábios ao dar de ombros. A resposta pairava no ar como um eco da pergunta, causando um zumbido desconfortável em seus ouvidos.
ㅤㅤㅤ— Desculpa ter batido em você — Amélia disse, tão baixo que foi quase inaudível.
ㅤㅤㅤEla puxou a cadeira de madeira, fazendo um barulho alto soar ao arrastá-la pelo piso, e sentou-se à sua frente. Seus olhos se fixaram em todos os cantos, menos nos de Alice. Com os dedos trêmulos, pegou um cigarro do maço diante delas e o acendeu com o isqueiro. Na primeira tragada, engasgou-se ao tentar prender a fumaça e seus olhos ficaram vermelhos.
ㅤㅤㅤAlice deu um sorrisinho tão discreto que mal transpareceu em seus lábios ao lembrar do primeiro dia juntas, e observou Amy tentar dar mais algumas tragadas, antes de desistir e apagar o cigarro pela metade no prato. O desconforto parecia crescer, alimentando as Pessoas de Sombra e fazendo com que elas dobrassem de tamanho, deixando a cozinha minúscula.
ㅤㅤㅤ— Você não tava legal, não é? — Amy perguntou, partindo um pedaço da torrada com os dedos. — Naquele dia na sala...
ㅤㅤㅤAlice ainda se lembrava dos lábios colados em sua orelha, as mãos fechadas em torno de seus braços e toda a sensação de perigo que corroía seu corpo em sua presença. "Porque eu posso", sua voz era carregada com uma ameaça fria enrolada em seda negra e o medo dominou seu corpo.
ㅤㅤㅤ— Você não tava falando nada com nada, mas... — Amy continuou de forma hesitante e se interrompeu, como se pensasse melhor no que dizer. — O que falou sobre o Klaus... Você não tava legal, né?
ㅤㅤㅤAlice sentiu as palavras se acumularem em sua garganta, pesadas. Ela queria gritar, contar tudo o que Adam havia feito, mas sabia que Amy escolheria tapar os ouvidos para aquilo. A devoção dela com o professor era evidente em seu olhar assustado e na forma que pronunciava o nome dele, era como se ela estivesse presa a ele de uma forma tão profunda que era impossível resgatá-la. Mas não custava nada tentar.
ㅤㅤㅤ— Quando li seu diário... — Amy fez uma pausa, mordiscando um pedaço de torrada e o mastigando com dificuldade, deixando suas palavras pesarem no ar como uma fumaça negra e densa. — Eu vi como é dentro da sua cabeça e eu... Não entendi no primeiro momento, sabe? — Engoliu seco ao encarar os frios olhos azuis. — Mas eu pesquisei sobre, e agora entendo que você pode ter sentido medo por algo... fora da realidade naquele dia, entende? É assim que a esquizofrenia funciona, não é? — Ela seguia falando em um ritmo controlado, porém o tremor em sua voz traía sua confiança. — O que quer que você tenha dito ou temido, não é real.
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o diário de alice taylor.
Mystery / ThrillerAlice Taylor equilibrava uma vida mundana com suas visitas à Toca do Coelho, um galpão abandonado onde enterrava seus segredos e se livrava de suas vítimas. Mas tudo muda quando Lucas Smith, o garoto popular de seu novo colégio, cruza seu caminho. E...