1. capítulo quatro

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ㅤㅤㅤUmedeceu os lábios com a ponta de língua sentindo as pequenas rachaduras que se formaram e mordiscando algumas peles soltas. Tique-taque. Os olhos estavam fixos no relógio de ponteiros congelados e batia o lápis na mesa no mesmo ritmo que eles deveriam estar correndo. Amy suspirou ao seu lado, ignorou. Bom dia, Alice Taylor. Não era um bom dia e ela sabia que deveria ter ficado em sua cama até a semana seguinte, sabia que não deveria prestar atenção nas vozes sentadas em seus ombros que sussurravam em seus ouvidos, sabia que seria melhor quando encontrassem seu corpo em decomposição um mês depois ou quando fosse apenas uma pilha de ossos, pois sua carne teria sido devorada pelos vermes que rastejam por baixo de sua pele, esperando famintos por seu último suspiro; coçou o braço. Desde o momento que acordou estava com uma sensação de que seus membros eram feitos de concreto e seu peito estava apertado demais para conseguir respirar normalmente, Alice Taylor não estava de bom humor naquela manhã.

ㅤㅤㅤEm meio a risos e conversas durante o almoço, sua cabeça doía e ela deveria ir para casa. Amy desembrulhou o lanche: um sanduíche natural com alguns biscoitos de chocolate e um suco de laranja em uma garrafinha plástica. Se não tivesse conhecido a família da garota, poderia facilmente imaginar uma mamãe Greene igual Amélia alguns anos mais velha e sorridente de manhã cedo conversando com a filha e a mãe entregando a sacolinha de papel com o adorável lanche que preparou com todo amor e carinho, dando dois beijos de despedida na filha, um em cada bochecha. Eu te amo, mãe. Também amo você, florzinha. Ficou tanto tempo encarando os biscoitos que Amy os ofereceu.

ㅤㅤㅤ— Você nunca falou sobre seus pais. — A ruiva comentou. — Eles são legais?

ㅤㅤㅤEm meio a uma mordida no biscoito frio com gosto de plástico, as orbes azuis se fixaram em Amy. Tique. Engoliu com certa dificuldade e respirou fundo. Taque. Lá vamos nós.

ㅤㅤㅤ— Não moram aqui, estão no Arkansas. — Ela respondeu rapidamente. — Mas são os melhores do mundo.

ㅤㅤㅤ— E você não tem mais ninguém aqui da família?

ㅤㅤㅤAlice balançou a cabeça negativamente.

ㅤㅤㅤ— Deve ser um pouco solitário, não é?

ㅤㅤㅤ— Você se acostuma a morar só, além do mais, minha mãe liga todos os dias depois do colégio... É quase como se ela estivesse aqui. — Alice se espreguiçou e levantou. — Preciso fumar um cigarro.

ㅤㅤㅤTique-taque. Jogou a mochila sobre o ombro sem dizer mais uma única palavra deixando Amy com a sensação de ter estragado as coisas. Aquele era um assunto proibido para ela e agora os rostos que se contorciam de rir pedindo a verdade. A verdade, fale a verdade, você se lembra? você se lembra, conte a verdade. Você. Se. Lembra. Andou pelos corredores até o armário e encarou o interior quase vazio por exceção de dois livros velhos e surrados que já estavam ali dentro quando chegou, duas carteiras fechadas de cigarro e um isqueiro reserva. O plano era ir para o estacionamento fumar quantos cigarros seu pulmão aguentasse e, se aquilo melhorasse o tremor em suas mãos, ela voltaria para mais uma aula e assistiria todas até o final do horário; caso isso não acontecesse, iria para casa em uma tentativa de sumir do mundo. Aquilo não era para ela, suspirou colocando a testa na porta de metal frio do armário, sentia olhares fixos nela e ignorou, respirando profundamente.

ㅤㅤㅤPorra, Alice.

ㅤㅤㅤEstava nauseada com as lembranças invadindo sua mente como uma mangueira de registro quebrado, ela não tinha controle dos flashbacks que fluíam, causavam mal estar e dores de cabeça constantes. Tique-taque. Clarice a chama de louca e implora para que o marido interne a filha no hospício. Era confuso. Cria do diabo. Tique-taque. Alice Taylor queria um tempo, fechava os olhos e se via na rua escura, a madrugada quente e o gato que a acompanhava todas as noites naquele mesmo trajeto. Tudo estava quieto dentro da casa, escuro, andava se esgueirando como um felino para não perturbar os demais, subiu as escadas e sua mãe surgiu como um fantasma diante dela; depois disso um borrão em sua mente quebrado pelos vultos de dentes afiados, a lembrança de seu pai usando seu corpo adulto para mantê-la imóvel no chão, o gosto de sangue na boca e outro apagão.

o diário de alice taylor.Onde histórias criam vida. Descubra agora