1. capítulo dois

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ㅤㅤㅤLá estava novamente diante do galpão abandonado que se assemelhava muito ao do mundo real, muitas de suas memórias se tornaram confusas com o passar dos anos por ela não conseguir distinguir onde realmente estava quando aconteceram: estava sonhando ou o sangue em suas mãos era real? Tudo parecia ser visto por um filtro que sugava toda a cor do mundo e o ar ao redor era uma mescla mescla estranha de cinzas, decomposição e tragédia; sussurros preenchiam os arredores, murmúrios estranhos, lamúrias e ameaças avulsas, não estava sozinha - conseguia ver centenas de vultos passeando em sua visão periférica, porém se tentasse olhá-los diretamente os mesmos saiam de vista, perguntava-se se eram pessoas de verdade como se todos os sonhos obscuros fossem interligados em um tipo de purgatório que os obrigava a vagar por ali sem rumo, tornando-se presenças frias; se realmente fosse assim, ela seria apenas uma pessoa de sombra no sonho de milhares.

ㅤㅤㅤ"Ecila", a Alice do outro lado do espelho cantarolou escondida em meio às árvores densas que a cercavam, Alice se dirigiu até elas e enquanto andava sentia calafrios percorrendo seu corpo toda vez que um vulto passava por ela e deixava seu corpo tremendamente gelado, em sua humilde opinião, não passavam de seres extremamente mal-educados apesar de não ter certeza de que eles conseguiam vê-la. O caminho entre os galhos secos ia se estreitando pouco a pouco e ela tinha impressão que seu corpo encolhia para permitir sua passagem, os pés descalços escorregaram no musgo ferindo-se nas pedras pontiagudas e a Outra Alice estava apenas alguns metros à frente dela, embora não conseguisse vê-la.

ㅤㅤㅤ"Otrep od mif", ela riu.

ㅤㅤㅤ― Pare de falar assim. ― Repreendeu, afastando os galhos com a mão para entrar na clareira

ㅤㅤㅤE lá estava novamente diante do galpão abandonado, suspirou frustrada sem saber por quantas horas já estava repetindo aquele ciclo sem perceber, pois não importava quanto tempo andasse ou por qual direção optasse seguir: ela sempre terminava na frente do galpão.

ㅤㅤㅤFechou os olhos e quando tornou a abri-los, a vista embaçada demorou para focalizar no ventilador de teto girava lentamente acima dela e os lençóis enrolavam-se em seu pescoço como se tentassem matá-la durante o sono e o resto do corpo nu ficou exposto. Permaneceu na mesma posição por uns cinco minutos, sentia como se qualquer movimento fosse servir de gatilho e aquele raro momento de paz fosse explodir como uma bomba atômica em seu rosto, mas precisava se arrumar. Com um suspiro pesado, caminhou até o banheiro e, na luz fraca, sua pele parecia doente, com olheiras fundas que davam uma expressão alterada aos seus olhos e os lábios esbranquiçados ameaçando a rachar.

ㅤㅤㅤAquela não era ela.

ㅤㅤㅤOs traços famintos ansiavam por algo.

ㅤㅤㅤEssa não sou eu.

ㅤㅤㅤEncheu a pia com água fria e deixou o rosto submerso até a pressão em seu peito começar a queimar seus pulmões, fazendo-a levantar ofegante e com vontade de chorar. Eram quase seis horas da tarde e ela não queria se atrasar para o expediente, faria as coisas certas em todos os pontos possíveis de sua vida daqui para frente. Queria ser uma versão melhor dela mesma e não seria aquela no espelho.

ㅤㅤㅤTrabalhava em um pub a poucos quilômetros de onde morava, uma construção de alvenaria ampla com janelas de vidros coloridos que formam mosaicos sem sentido algum, letreiros em neon que diziam "Estamos abertos" e "Sejam bem-vindos". Olhou seu reflexo no retrovisor, a maquiagem realmente fazia milagres e deixava suas feições com um aspecto bastante saudável ao esconder as olheiras e aumentar seus olhos, passou um batom vermelho tão escuro que era quase negro e, nesse meio tempo, viu alguém no banco traseiro sabendo muito bem que estava sozinha. Calçou os saltos antes de sair e rumou para a porta de trás que dava acesso direto à cozinha.

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