1. capítulo dez

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FLASHBACK

ㅤㅤㅤCaminhava sozinha pela rua em uma madrugada quente de julho tragando de mal jeito um cigarro que havia pegado escondido e conversava com um gato caolho que todas as noites a acompanhava desde a Sra. Darcy como se quisesse ter certeza de que chegaria em casa, xingou baixinho quando a brisa soprou a fumaça de volta para seu rosto fazendo com que seus olhos ardessem. Agradeceu a companhia do bichano e prometeu que o visitaria em breve, o animal assentiu como se a entendesse e sentou na beira da calçada, levantando a ponta do rabo, esperando até ela abrir a porta silenciosamente para poder seguir seu caminho de volta para casa. Sentia-se exausta, fazia uma semana inteira que não tinha uma noite decente de sono, vivendo em um constante estado de mal humor que sei pai não conseguia entender ou conversar sobre, pois a garota se afastava falando para deixá-la em paz; aquilo era uma longa história em que ele estava presente o tempo todo, mas não conseguia ver que algo estava errado.

ㅤㅤㅤTudo começou quando tinha dez anos e sua mãe passou a lhe dar uma pílula por semana, depois pulando para três e depois sete, às vezes juntava algumas e as tomava de uma vez porque gostava da sensação que traziam deixando tudo em seu interior calmo a ponto de não se importar com a confusão pela casa, aquilo tinha sido a melhor coisa do mundo e durou bastante tempo até o ano anterior em que acidentalmente ingeriu uma quantidade bem acima do costume. Não entendeu quando acordou no hospital após uma lavagem estomacal e os primeiros dias depois daquilo foram horríveis, seu humor oscilava como uma vela na brisa e ela gritava com os outros, deixando-os sem reação já que sempre foi uma garota muito quieta. Algumas semanas depois daquele acontecimento, as coisas começaram a voltar ao normal, seu pai ficou feliz ao ver Alice como ela mesma e até arriscou dizer que o relacionamento entre mãe e filha havia melhorado depois daquele episódio, pois Clarisse insistia em fazer a janta da criança todas as noites.

ㅤㅤㅤNaquele dia não estava sozinha em sua própria cabeça quando saiu para a casa da vizinha na rua de baixo e esperava que a idosa tivesse um pouco daquele chá esquisito que fazia as tardes parecerem mais agradáveis e silenciosas, porém encontrou algo muito melhor. Segurou o xixi por um tempo longo demais, mal se aguentando em pé quando foi para o banheiro, enquanto lavava as mãos perguntava para seu reflexo o que aconteceria se abrisse o armário do espelho por curiosidade e a outra Alice disse que na pior das hipóteses suas mãos caíram, mas não custava nada olhar, não é mesmo? Concordou abrindo o espelho logo em seguida, os olhos brilharam ao ver dois frascos amarelos preenchidos até as tampas com as pílulas verdes iguais às de sua mãe. A Sra. Darcy é muito velha e provavelmente não vai perceber se eu pegar algumas, talvez até se confunda achando que tomou doses repetidas ou que os dias estão passando muito rápido, seguindo essa linha de raciocínio, pegou dez comprimidos de cada frasco.

ㅤㅤㅤA verdade era que Alice não conseguia dormir porque fazia uma semana que sua mãe não preparava sua janta, estava de mal humor porque não havia mais tranquilizantes triturados no alimento e o corpo reclamava de algo que ela não tinha a mínima noção que faria tanta falta assim, as pílulas dançavam animadamente em seus bolsos enquanto subia as escadas pensando em como sua cama deveria estar confortável, porém topou com Clarisse se arrastando como um cadáver reanimado indo em direção ao banheiro. Prendeu a respiração, evitando emitir qualquer som quando as duas se encararam por momentos tão longos que pareceram uma eternidade, os olhos escuros da mulher estavam vidrados como se fossem Pessoas da Sombras sob o olhar de um humano normal – evitavam se mexer, pois qualquer movimento atrairia a atenção e enquanto estivessem parados se tornavam invisíveis.

o diário de alice taylor.Onde histórias criam vida. Descubra agora