Capítulo 10, parte 2

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Dormir era o que Liam mais vinha fazendo ultimamente. Nem sempre tinha assim tanto sono, mas, feliz ou infelizmente, tinha tempo, e tempo era um bem que o levava a colocar o cérebro para funcionar. Esse funcionamento só trazia dor de cabeça e recordações agridoces, que eram facilmente silenciadas quando o organismo era posto em repouso.

A noite anterior fora ótima, contudo. Apesar do desânimo crônico e das constatações tristes que a vida joga na cara, foi ótimo estar reunido outra vez com os amigos e sentir que não estava sozinho. Uma das consequências mais tristes da mudança era aquela solidão imóvel, perene. Mesmo quando Leda estava por perto, ou mesmo com os ruídos da cidade janela afora, mesmo em companhia da TV, ou distraído por algum vídeo na internet, conversando com Téo ou com Alberto por mensagens... Nada preenchia completamente aquele buraco do peito.

O sofá, aliás, amanheceu do mesmo jeito: vazio. Com os olhos ainda anuviados, tendo sido acordado pelo cheiro de comida vindo da cozinha, Liam perguntou pelo rapaz que dormia na sala.

— Foi embora agora há pouco — Leda informou, e acrescentou que quase pulou de susto quando viu aquela figura estranha deitada por lá.

O edredom e o travesseiro estavam postos com esmero sobre o estofado. Devia ter sido Leda quem arrumou depois da partida do rapaz. O barulhinho característico das panelas sendo pilotadas no fogão e o aroma inconfundível da cebola sendo frita despertaram o apetite de Liam, que se aproximou da empregada para ver o que estava sendo preparado. Arroz, feijão, frango grelhado; a sacola de supermercado com uma cabeça de repolho dentro e tomates sobre a pia sugeriam uma salada como acompanhamento. Será que ainda tinha sorvete no freezer?

— Quem era esse rapaz, que mal lhe pergunte? — Leda continuou.

— Meu vizinho, aqui do 602. Tava no bar ontem e ele tava sentado no meio-fio; tinha perdido a carona, a carteira, esqueceu a chave... Trouxe ele e falei pra dormir aqui.

Hum...

— Não tem nada de "Hum...", só trouxe ele pra cá e ele dormiu bem quietinho no sofá.

— Ué, não falei nada!

— Esse "Hum..." falou por você.

Leda riu, esperta. No fundo, queria mais é que o patrão encontrasse alguém para sair logo daquele baixo astral, mesmo sabendo que ele ainda levaria algum tempo para superar o que existiu entre ele e Noah.

— Ele é bonitão, né? — ela insistiu.

Isso era indiscutível, embora, sendo Liam o tipo de homem que dificilmente usaria expressões como "bonitão" ou "boa pinta" para se referir a outro ser do mesmo sexo, já que nunca sentira sua masculinidade minimamente abalada ao dizer "Fulano é lindo", mesmo quando ainda se considerava heterossexual, ele jamais faria aquela observação usando aquele termo.

— Você achou?

— Ai, eu achei... Um loirão, assim, diferente, né? Uma gente que a gente não vê na rua todo dia.

Quem riu foi Liam, que apesar de concordar com a empregada, não tinha tido assim tanto tempo para examinar as formas do vizinho-galã.

Pouco após as duas da tarde, Leda ia embora. Passara por lá aquele sábado só para deixar comida pronta para o patrão para o final de semana e dar uma geral na casa. Liam a convidou para almoçar consigo, mas ela tinha outros compromissos, acabou recusando a oferta. Foi embora e o deixou sozinho com sua tediosa tarde sabatina.

O lazer do final de semana do rapaz seriam as contas: contas do bar, do apartamento, água, luz, telefone, gás, internet, supermercado, aluguel, combustível, contas e mais contas. Quando morava na mansão, Alberto cuidava de tudo e Liam mal tomava nota das despesas, mas, agora que era dono do próprio nariz, tinha de colocar tudo na ponta do lápis, e estava descobrindo que essa atividade podia ser deveras enfadonha; mas era melhor do que ficar com a cabeça vazia, com a imaginação passeando por lugares inóspitos. As latinhas de cerveja e o maço de cigarros ajudavam a tornar a tarefa menos entediante.

Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora