Capítulo 13, parte 3

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Liam se levantou de pulo e saiu pela porta como um relâmpago, acompanhado pelos passos mais miúdos e menos ágeis de Rita. Encontraram-se todos na mesma sala de espera, onde o cirurgião, com a expressão tão cansada quanto a de todos os demais, os aguardava para dar as notícias por que eles ansiavam há mais de seis horas. Após um suspiro profundo, ele disse, cortando como faca o silêncio agonizante:

— A cirurgia acabou... Mas... houve complicações.

— O que aconteceu?!

— Bom, o quadro do Noah era bastante complicado, vocês sabem... O coração do doador chegou aqui em bom estado, mas o processo todo demorou mais do que o previsto... Enfim, depois que ele saiu do bloco cirúrgico, a caminho da CTI, o Noah teve uma parada cardiorrespiratória, que pode ter sido causada por uma reação do corpo ao órgão transplantado... Conseguimos controlar a parada, mas ela acabou levando a uma hipóxia cerebral que deu início a um processo de infarto cerebral, o que poderia ter levado à morte dele em pouco tempo... — outro suspiro. — Em função disso tudo, ele acabou entrando em coma e está em observação na CTI.

— Ai, meu Deus...! — Rita semi-exclamou, cobrindo a boca com as duas mãos.

— Isso é grave, doutor? — Inácio perguntou. — Ele vai ficar bem?

— É difícil dizer com precisão... Até o momento o quadro segue estável. Ele já está sob efeito de imunossupressores e em repouso, mas a resposta do organismo a um coma é indeterminável; a recuperação depende das reservas do corpo dele. Um coma pode durar uma semana, um mês, às vezes até anos... É um estado de vulnerabilidade alta; o cérebro pode não responder a estímulos, o paciente perde a habilidade de engolir saliva, perde o controle da língua, pode acabar se asfixiando...

— Quando a gente pode ver ele? — Liam interrompeu, afoito.

— Vou pedir pra vocês esperarem uns dois ou três dias, depois libero as visitas. Ele está inconsciente, é claro, não vai ver nem ouvir vocês... Agora que ele está na CTI, ele não precisa de acompanhantes, mas o horário de visitas é irrestrito, vocês podem vir quando quiserem.

Calaram-se outra vez. Havia muito que queriam perguntar, muito que queriam saber, mas as respostas de que precisavam só o Tempo poderia dar, e este não estava ao lado deles naquele momento. A única solução, bálsamo de toda a agonia, era esperar, e Esperar. Por ora, já não era mais de nenhuma serventia ficar no hospital; o melhor era voltar para casa, repor as energias e dar um jeito de colocar a vida nos trilhos outra vez depois de agitação tamanha.

Aquele ainda não era o fim da tribulação de Liam. Na tarde do dia seguinte, ele teria seu último encontro com o amigo Téo, que agora viveria apenas em seu coração e no peito de Noah. Depois de um dia em que não se teve a chance de sentir, pois alegrar-se pela vida de Noah era louvar a morte de Téo, e lamentar-se pela morte de Téo era desconsiderar a vida de Noah; depois de horas tão paradoxais passadas no branco luzidio e intoxicante de um hospital, algumas horas de descanso para a alma eram mais que merecidas; mas Liam não as teve, pois passou quase toda a madrugada tentando voltar-se a si outra vez. Morrer Téo era morrer um pedaço de Liam próprio, um pedaço lindo de si, que jamais seria substituído; era perder uma mão e reaprender a vida tendo só a outra, tirar as rodinhas da bicicleta que já não precisava mais de rodinhas. Um aprendizado penoso, demorado e inevitável, que começaria mais cedo do que qualquer um quereria começar.

No hospital, Noah dormia sem saber; em casa, Liam se levantava da cama muito tarde, passadas as onze da manhã, para comer, se vestir e ir ao velório e ao enterro de Téo. No celular, uma ligação perdida de Nicole e uma mensagem de Alberto. Na cozinha, Leda, cuja vida parecia ser a única que não se alteraria sequer minimamente, arrumava o almoço sem saber de nada do que se passava. Liam contou-lhe a novidade triste, que ela recebeu com espanto e lamentação, mas, assim como todos os demais, Leda não sabia dizer nada que servisse de consolo. De enunciados como "Ele era tão jovem!", "Que tragédia!", "Esse mundo está perdido!" já estavam todos um pouco fartos, Liam incluso, por isso a empregada os poupou, mesmo não tendo deixado de pensá-los.

Contrariando a tradição, Liam preferiu não seguir o cortejo. Sabia onde seriam realizados o velório e o enterro e foi sozinho, em seu ritmo, tendo os olhos cansados cobertos por óculos escuros. Os raios de sol, alheios a todos os acontecimentos terrenos, cruzavam a atmosfera e pintavam as cores da cidade trazendo um calor desagradável e desconfortável, que não tornava mais fácil o uso dos trajes pretos de luto que enegreciam a sala do velório. Liam chegou atrasado, mas chegou. O cheiro enjoativo de flores alcançaram suas narinas antes que ele se aproximasse do caixão. Os pais de Téo, poucos amigos, Alberto, Nicole já estavam ao redor. Olhares semi-vivos, cumprimentos silenciosos, moveres de cabeça frouxos e abraços pesarosos eram trocados de forma quase ritualística. A conversa baixa e sussurrada entrava por um ouvido e saía por outro; e, no meio da sala, de terno e gravata, deitado em tecido espumoso branco, Téo, com o tronco exposto e expressão tranquila. Parecia dormir, equânime, com as mãos cruzadas sobre o peito e a aparente realização espiritual de que estava agora em um lugar melhor.

Em silêncio, ainda em estado catártico, Liam tocou a mão gelada do amigo e se despediu em pensamento, tendo nenhuma certeza senão a de que um dia eles se encontrariam de novo.

Depois levaram o caixão. Sob o sol alaranjado das cinco da tarde, seis homens carregaram o féretro rumo à sua última parada. Téo foi enterrado na cova de sua família, sem discurso religioso nem mais lamentações. As últimas rosas foram jogadas, as últimas lamúrias foram expressas e, finalmente, a caixa de madeira foi lentamente soterrada, o chão, cimentado, e a lápide, eternizada: "Na Terra, deixará saudades; no Céu, alegrará as estrelas".

***
Uma semana depois, a vida estava prestes a continuar. Passado o ciclone de eventos e a chuva grossa de angústia, soprava agora uma brisa traiçoeira, sorrateira e misteriosa, que punha todos os ânimos a postos para um novo temporal, que tanto podia cair quanto não.

No hospital, Noah passava bem. Com o passar dos dias, o Santa Maura veio a ser uma espécie de segundo lar, mas também um retiro existencial na vida de todos. No quarto, o jovem desacordado recebia a visita frequente de Liam e de seus pais de forma quase agendada, tanto que, depois de algumas idas e vindas, estabeleceu-se um tipo de padrão de troca, que se mantinha sem planos e ocasionava encontros esporádicos no apartamento e na sala de espera, onde conversavam sobre os mesmos assuntos de sempre. Durante a semana, Rita vinha; aos sábados, vinha Inácio—raramente vinham ambos. Sempre que tinha um tempo—uma horinha, que fosse—, Liam estava lá, como bom homem e namorado que viera a ser. Às vezes conversava com Noah, na esperança pueril de que ele estivesse o ouvindo; contava como fora seu dia, o que acontecia no cenário político mundial, falava o quanto Téo certamente estaria feliz por saber que continuava vivo dentro do outro. Falava de Deus; perguntava se Noah achava que aquilo era obra divina ou mera coincidência, e questionava essa Justiça Maior, que alegadamente escreve certo por linhas tortas, que sentenciou Téo à morte em primeira e única instância.

Para todos esses monólogos, é claro, não recebia resposta alguma.

E Noah não acordava. Primeiro se foram os dias, depois as semanas, agora partiam a largas passadas os três primeiros meses daquele estado de incerteza. O médico seguia assegurando que o quadro do rapaz era estável e as chances de o coração transplantado ser rejeitado a essa altura eram muito baixas, o que já era de algum alívio. Os problemas maiores, contudo, eram dois: a espera, que acompanhava todos desde longa data (uns mais, outros menos), e o medo, mas não só o medo de Noah morrer; um medo novo, fruto da solidão e do silêncio ininterruptos: o medo de esquecer.

Há três meses Liam não ouvia a voz de Noah, não tocava seu corpo com intimidade, não dormia ao seu lado, não dividia sua vida, não se conectava ao seu outro lado, ao seu eu mais superior, ao Liam Que Amava Noah. Noah era agora uma obra de arte inerte, uma a quem Liam devotava dias e dias de sua existência a admirar, mas que temia de morte a possibilidade de sofrer do efeito inevitável de qualquer obra de arte: o fim da novidade. E se um dia, depois de tanto aguardo silencioso, ele gradualmente se acostumasse à vida sem Noah? E se, quando ele acordasse, Liam já não sentisse mais o mesmo? Ele não queria deixar de sentir, porque deixar de sentir acarretaria esquecer-se da eterna novidade que era amar Noah... E se ele se esquecesse?... O medo de se esquecer, o medo de perder aquele tesouro tão precioso que ele descobrira ao longo de mais de dois anos—e que lhe custara tanto conquistar!—, era devorador, e, em seus monólogos interiores mais ensandecidos, "Deus, não me deixa esquecer..." era a linha que Liam mais repetia.

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GENTE! Preparem os coraçõezinhos aí porque estamos na reta finalíssima. Acredito que esta aqui tenha sido a antepenúltima parte da história toda! Segurem os forninhos!

xo 


Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora